sexta-feira, dezembro 30

Para os próximos dias

Não fugirei do óbvio. Sabe, tem dias que só dá vontade de ficar na cama se lamentando por qualquer coisa. E tem dias que tudo que a gente queria era sair para fazer alguma coisa boa, e não pode. Mas sabe, não adianta eu dizer que ano que vem vai ser diferente só porque pretendo fazer uma meia dúzia das coisas que estão escritas numa lista de 389289032 coisas para fazer de 2012 um ano melhor; eu sei que eu vou passar muitos dos meus futuros dias com as mesmas vontades dos dias de hoje. Mas então, como eu estava falando, não fugirei do óbvio.

Eu vou ainda passar muitos dias querendo não ter saído da cama, ou querendo estar em outro lugar. Eu vou me arrepender de não ter feito algumas coisas antes do prazo ficar apertado demais. Eu vou continuar acordando atrasada no final do semestre, correndo até não mais aguentar para no fim chegar pontualmente no horário. Eu ainda vou estar no lugar errado, na hora errada, torcendo pra pessoa certa esbarrar em mim. E quem sabe eu apareça no caminho de alguém que também esteja fora do curso normal das coisas. Por essas coisas que digo, não fugirei do óbvio.

A única coisa que eu posso me comprometer a fazer no próximo ano é transitar. Entre o óbvio, a tentativa do original, a vontade do novo. Eu posso ser a primeira a chegar. A última a ir dormir. A mais feliz por causa de um sorriso. A mais decepcionada por uma falta de "bom dia". Eu posso ser o que eu quiser, na verdade, e essa é a única coisa que eu posso me comprometer a fazer. Mas não nego que vou ser óbvia, às vezes, mas isso é uma das coisas mais importantes pros próximos dias.

Porque a vida é meio óbvia. E eu não quero mais fugir dela.

A gente tem mais é que viver todos os dias. Inclusive os óbvios, que têm os mesmos acontecimentos, e os mesmos desfechos. Então, faz o favor de ser meio óbvio também, e viver o ano inteiro. Viver os dias chatos do jeito que der, e aproveitar os dias bons mesmo de mal humor. Isso a gente pode prometer para 2012. Não fugiremos do óbvio. Não fugiremos dos dias.

Não fugiremos da vida.

terça-feira, dezembro 27

Às vezes

Eu não mandei você sorrir pra mim daquela maneira. Eu não pedi pra você ser desse jeito aí, como quem veio sem nenhum propósito, sem nenhuma intenção. Sabe, não pedi nada disso. Mas aí você aparece cada vez mais, e sorri cada vez mais. Me fez querer alguma coisa, às vezes. Eu sei que é ridículo, mas o que eu posso fazer.

Eu não pedi pra você ser desse jeito aí.

E eu não pedi pra querer isso. Essa vontade de ver de novo os sorrisos que você tem; e querê-los para mim. Quando você voltar, dia desses, e cantar de novo, eu vou guardar os sorrisos que você me der e plantar alguns outros, pra que haja algo para eu colher quando a gente se ver outra vez. Eu sei que vai passar um bom tempo até lá, e que talvez essa vontade toda passe. Mas daí você sorri de novo. E daí eu vou sorrir de volta.


Às vezes eu acho que eu sempre vou te sorrir de volta.


segunda-feira, dezembro 26

Telegrama II

Que diabos eu faço com isso? Uma boneca quebrada, um cartão de memória corrompido e um rolo de esparadrapo. Sabe, Noel, você ultrapassou limites sérios. Daqueles bem problemáticos mesmo. Mas então, o que você espera que eu faça com isso?

Se foi pra provar que você existe, não dava para pelo menos ter mandado a boneca inteira? Ou quem sabe um cartão de memória com memórias felizes; e eu trocaria o rolo de esparadrapo por um superbonder, ao menos. Só que não. Você se mostrou um baita sacana, seu velho. E não me engana mais.



P.S: Essa foi a última vez que nos falamos.

sábado, dezembro 24

Telegrama

Eu vou direto ao ponto. O negócio é o seguinte: eu não acredito mais em você. E toda aquela história sobre acreditar na magia, sobre esperar, e sobre fazer por merecer que as coisas boas virão... besteira. Cansei, viu? Não espere cartas minhas de agora em diante. 

Não sou dessas. 

Não compro promessas porque sei o quão vazias elas podem ser, e o quanto machucam quando permanecem apenas como palavras. Não espere que eu vá ser legal porque isso não vai acontecer. E quer saber, você não é ninguém para me julgar. 

Você nem mesmo é real.

Mas eu não sou injusta, também. Não quero afastar você da minha vida. Então a gente combina desse jeito: se você for bom, gentil e fizer o favor de deixar de ser exatamente como vem sendo, talvez eu possa lhe recompensar com a minha confiança. Talvez eu possa voltar a acreditar naquele blábláblá que você conta todos os anos. Talvez a gente volte a acreditar um no outro. E, quem sabe, nós possamos até nos levar a sério. Mas olha só, não vai ser fácil.

Então eu vou direto ao ponto: trata de fazer as coisas acontecerem e eu farei o favor de acreditar em você de novo. Temos um trato? 



Um feliz Natal pra você. Ou não, também.
G.

quarta-feira, dezembro 21

Divisores

Olhou para o céu e desprendeu os pés do chão. Um de cada vez - porque mudanças são feitas cada uma a seu tempo - e eles deixaram de sentir o peso do corpo sobrecarregado que transportavam. Olhou para o céu e encontrou conforto num mar de nuvens negras que se aproximavam, sabendo que elas a levariam para mais longe do que era desejado.

Mas quem se importaria.

Desprendeu os pés do chão e fechou os olhos. Alcançaria o topo a tempo de ser carregada pela tempestade, de sentir o turbilhão que se anunciava. A tempo de sair dali enquanto ainda lembrava de coisas boas. Olhou novamente para o céu e aceitou tranquilamente o tempo conturbado que viveria. 

Aceitou que viveria.

terça-feira, dezembro 20

Private illusions - I

Admito. Gosto de pensar que fui a causa, mesmo que não haja motivos para tal. Mesmo que isso tenha partido de uma decisão arbitrária, sem relação nenhuma com o que eu gostaria de ter feito naquele outro dia, quando só te olhei e sorri. Eu gosto de pensar que de alguma maneira eu te fiz escolher alguma coisa.


Mesmo que isso não seja necessariamente saudável para mim.



my pass-times 
consisted of the strange, and twisted and deranged.
my crying lighting

domingo, dezembro 18

Ainda que sem assunto

Você parece ser bom pra mim.

Então, se eu disser que a gente pode dar certo
que tal se der pra gente ser junto
mais perto.
Se eu disser que a gente pode estar junto
que tal se eu provar que a gente pode
dar certo?

Porque você parece ser muito bom para mim.

Que tal se eu mostrar que gente pode estar perto
mesmo quando não for junto
ou certo.
Então quando a gente estiver sem assunto
ainda que perto
que tal se a gente pudesse dar certo?


Você parece ser o bom pra mim.

E o junto parecer ser o bom pra nós.

sexta-feira, dezembro 16

Pe[r]dido

Alguém me diz pra que lado eu devo ir. Eu perdi meus passos no caminho de ontem, e já não sei mais pra onde foram minhas certezas. Alguém me mostra o caminho seguro porque eu vou acabar desviando da rota. Eu vou acabar acabando com o resto que sobrou de mim.

Alguém segura a minha mão e me leva daqui.


Pelo menos até amanhã.

domingo, dezembro 11

[Res]piro

Jogou-se nos braços soltos do acaso e prendeu a respiração, temendo. Abriu os olhos antes cerrados para ter certeza de que cairia em qualquer lugar. Qualquer um mesmo. Jogou-se nos braços frouxos do destino e escolheu não mais pensar no que viria. No que queria que viesse. Ou no que pudesse vir a qualquer momento.

Permitiu-se respirar de novo, agora bem fundo, para que o peito sufocado não sentisse mais o desespero dos dias presentes.

Adormeceu com a ciranda. Largou-se no espaço entre o não saber e o não se importar, porque das coisas já estava cansada. Atirou o corpo imóvel no espaço cujas fronteiras entre indiferença e proteção não são conhecidas. Tremeu os lábios e o coração.

Mas respirou.


sábado, dezembro 10

De sempre

Hoje ainda enxergo todos os meus medos de criança rondando quando estou fragilizada. E incrivelmente eles são os mesmos, apenas mudaram de corpo, de forma. Eles sabem o que me faz infeliz, e eles me fazem temer aquilo que deveria ser redenção. Me conhecem tão bem que às vezes me entrego, sem resistência.

Ontem ainda, era eu quem dizia que não mais temia as sombras daquele passado confuso. Era eu quem erguia a cabeça a dava o primeiro passo em direção à vida. Mas agora me dei conta que de nada adiantou tentar ser brava, pois hoje eu me entreguei aos medos de outrora e, desesperada, procurei por um cobertor que me salvasse. Ou por um colo que acalmasse - e que não achei. Hoje eu procurei dentro de mim a coragem de que tanto te falo, mas só encontrei os medos de sempre.


Covardes.

quinta-feira, dezembro 8

Nota V

Se eu tivesse a coragem de pisar por cima dos teus sentimentos e ignorar a tua condição, começaria agora a falar um bando de boas verdades. Daquelas bem ardidas, do fundo poço. Do fundo de peito. Se eu tivesse a falta de noção necessária, eu começaria agora mesmo.

Começaria pelas mais doídas.

Se eu tivesse vergonha na cara, falaria tudo junto, que era pra não sobrar nada escondido. Eu olharia a tua expressão mentirosa e riria, porque a verdade tem graça - um senso de humor negro. E aquelas coisas bem doloridas (que para ti são mais é bem feitas) eu te faria todas. Porque a verdade tem ridículo, tem retorno. Tem enredo.

E tem feridas.

Se eu tivesse menos cortes eu te mostraria todos. E eu te contaria a história em cada um deles. E depois te cortaria da história da minha vida. Se eu tivesse menos cortes, menos empatia e compaixão, eu te contaria um belo punhado de coisas. Até acabarem-se as palavras medidas.

quinta-feira, dezembro 1

Das flores

Não me fale das flores só pra eu não dizer que tu não falaste delas. Não me sopre as palavras que eu gosto, porque assim não tem graça. Seja um pouco mais seguro de ti, pra que eu possa me achar certa contigo; achar certo o caminho. Naquele mundo bom pra gente.

Não fale das flores só pra eu não dizer que tu não falaste nada. Me fale porque elas finalmente cresceram em ti, da cor da vida boa. Porque cresceram da cor dos céus felizes. Da cor da gente quando ri. Me fale porque elas me querem por perto.


Mas perto mesmo.
Ou então, só não fale.

segunda-feira, novembro 28

Leaves in the river

Sabe o que é? Essa coisa que vem chegando, devagarinho, sem a gente notar. Essa sensação de que tudo pode melhorar se a gente abrir a janela pra ver o sol. Sabe o que é? Eu não sei mais o nome, do que se chama isso, mas é aquela coisa que dá na gente e parece que deixa as vibrações em harmonia.

Eu achei que você soubesse o que é, pra me ajudar a dizer. Aliás, você me ajudou a encontrar isso aqui; e obrigada por isso. Mas, sabe, acho que já tá na hora de soltar a corda do meu pescoço, e parar de me sufocar dessa forma. Sabe essa coisa que vem devagarinho, deixa tudo melhor e mostra como o pôr do Sol pode ser bonito de novo? Pois é... acho que você deveria sentir isso também. Permita-se.

Permita-me.


quinta-feira, novembro 24

Pata-cega

Será que se eu apagar a luz tudo isso vai embora? E aí eu vou poder ficar olhando pra um céu cheio de estrelas, sossegada, até meu pescoço doer. E eu também vou poder deitar no gramado ali de fora - porque a temperatura vai 'tar boa - e respirar bem fundo quando passar aquela brisa fresquinha da noite.  Se eu apagar a luz o escuro fica mais escuro e as luzinhas no céu ficam mais fortes ainda, então vai ser melhor. Porque daí eu não vou mais me preocupar com as luzes que ele acendeu pra não me deixar ver o brilho mais bonito.


Será que se eu apagar a luz da casa ele vai pensar que não tem ninguém, e ir embora?



E daí, será que tu me encontra nesse escuro?


segunda-feira, novembro 21

Nota IV

Tem vezes que eu paro e penso em quando foi que o mundo deixou de ser bom para mim. E aí eu vejo nos olhos alheios respostas que não me servem. Que não me dizem.


Tem vezes que eu só queria saber porque raios o meu mundo deixou de ser para mim.
Mas meus olhos não me dizem muita coisa boa.


 

domingo, novembro 20

Foi um tanto assim

fiz de um tudo
e tanto
que de tanto me fez tão pouco
me fiz tão pouco
em todos
que de um tudo ficou pranto

e ficou ponto
um tanto feito e pouco dito
com tudo e outros



No fim, não foi nada mesmo.

quinta-feira, novembro 17

"I've got another confession to make [...]"

Eu dancei a música que tocou e deixei que os meus passos fossem guiados pra longe. Eu abri mão do controle para dar passos maiores, desajeitados e muito mais ambiciosos do que eu admitiria em meus melhores dias. Eu menti, e fingi que não sabia pra onde andava. Estraguei tudo, e tem coisas que não podem ser reparadas. 
[tem coisas em mim
[que vieram com defeito de fábrica.

Agora me perdi de ti. Me perdi de mim. E tem coisas que a gente, depois que perde, nunca mais encontra.




[tem coisas em mim que eu nunca fui capaz de achar.

terça-feira, novembro 15

Hoje não

Hoje eu não vou te observar de longe e nem pensar no que fazer para o longe ser mais perto. Não vou esperar tu passares para sentir o teu cheiro se espalhando pelo ar em volta de mim. Eu não vou acompanhar os teus passos nem pensar nos teus atos. Os que tu fizeste comigo.

Hoje não. 

Hoje eu não vou viver para ti. Hoje as músicas não vão ser cantadas com a tua voz, na minha cabeça, e nenhuma delas vai me fazer lembrar de algum tempo que não volta. Hoje as músicas vão ser mais bonitas, e eu vou cantá-las como se cada uma tirasse um pedaço teu de dentro de mim. Hoje eu vou repensar os meus atos e esquecer os teus, porque a verdade bate na minha cara e me diz que o que eu vejo são fantasmas de um passado que nem existiu. 

Existiu em mim.


Mas hoje não.


E amanhã, não mais.


sábado, novembro 12

Epifania

Idiota. Absolutamente. E sabe, nem foi difícil ser tão estúpida assim. Foi até fácil demais, porque na real você não deixou muitas alternativas. Você simplesmente chegou, meteu o pé na porta e destruiu minha zona de conforto. Pegou o que te interessava e foi embora, de cara limpa, e nem se preocupou em arrumar a bagunça.


Minha zona de conforto está em pedaços, e nem foi tão difícil pra você. Foi ridiculamente fácil porque na real eu não ofereci resistência nenhuma. Você me achou no esconderijo aqui de dentro e me arrancou dele; me deixou partida em dois. Eu vi possibilidades enquanto você fechava os olhos. E vi segurança segundos antes de você explodir meu carro forte.


Eu só não vi o quão absurdamente idiota eu estava sendo.

quarta-feira, novembro 9

A ordem natural das coisas

E então o mundo parou. E eu fiquei olhando, enquanto as minhas expectativas eram desfeitas lentamente. O mundo não girou nem um centímetro, e em nenhum sentido; ele parou e eu observei como quem larga a mão da sorte e solta o corpo em queda livre.

Eu caí. 

E de repente algo me amparou. Um esperança, um fiapo de alguma coisa que me prendia e me impedia de receber o impacto que logo ia chegar. A poucos metros do chão eu parei numa escada que levava a uma porta meio mal tratada, um pouco judiada pelo tempo. Tinha algo nela que despertava toda minha curiosidade. Antes mesmo de perceber, eu já tinha estendido a mão para abri-la. A porta rangeu. 

Mas foi só. Ela não deu passagem.

E então eu quis voltar para a escada e ver aonde mais ela me levaria, mas já não havia escada. Não havia caminho de volta. Era a porta fechada ou o precipício de novo, a queda de novo: sensação que esmaga o peito. Só que a queda não era mais tão grande, e eu aceitei que às vezes esse é o único jeito de seguir: pra baixo, de volta pro começo.

E eu pulei.

Segundos depois eu parei naquele chão lamacento e gelado que me esperava, e as pedrinhas espalhadas me cortaram os joelhos e as palmas das mãos. Eu saí machucada, e ainda me dói. Mas aí o mundo girou de novo e começou a curar os arranhões. Porque, no fim das contas, foram só arranhões. E o mundo seguiu girando com todas as minhas esperanças quebradas, e eu observei cada uma delas morrer e dar o lugar a outras, que ainda não existiam.



Aquelas outras que virão.


segunda-feira, novembro 7

Nota III

Eu procurei as tuas mãos por debaixo do lençol, para pressioná-las entre as minhas e sentir a tua pulsação sob meus dedos. Então fechei os olhos e, protegida, quis dormir o teu sono tranquilo.




Eu fechei os olhos e passei a noite lutando contra meus dragões. Mas sou mais forte com o teu escudo, e por isso eu não tive medo.


É uma pena que você sempre suma quando eu acordo.



sábado, novembro 5

Sorriso do dia

Acho que no fim das contas vai ser sempre tudo assim mesmo. Eu vou segurar a confissão até o finalzinho, enquanto você vai continuar agindo como quem também não tem nada a dizer, e nós vamos seguir usando os mesmos sorrisos nos dias adequados. O meu sorriso de hoje é aquele que você viu no começo da semana, com aquela mesma empatia e questionamento. Sabe, tem dias que a gente repete de roupa, e tem dias que a gente usa a mesma expressão.

Me pergunto qual é o seu sorriso de hoje.

Eu já usei o sorriso amarelo por demais. Já cansei de ver no meu rosto a decepção disfarçada pelo riso histérico. Eu já usei mais os sorrisos de mentira do que os sinceros, mas o que eu uso para ti não é dos falsos. Ele é daqueles que vem de dentro, que escapam antes de eu poder segurar. Eu não lhe ofereço sorrisos vazios, porque eu acredito em tudo que lhe digo. E acho que no fim das contas vai ser sempre assim mesmo.

Me pergunto que sorriso eu queria lhe mostrar hoje. E qual você me daria em resposta.

terça-feira, novembro 1

Da nossa caixa

Há uma caixa onde nós colocamos todas as coisas que vivemos. Não importa o que seja, não importa se foi bom, não importa se fez mal; vai pra lá e fica, até ser achado de novo - para reabrir uma ferida, ou para costurar as partes soltas. A gente nunca acredita no tanto de espaço que ela tem, porque ainda que se guarde tudo, as coisas fogem de vez em quando, e deixam a caixa pra outros ocupantes. Às vezes nós até recebemos um aviso de "lotação esgotando", mas é só até as coisas se acomodarem e acharem o seu devido canto - ou sua rota de fuga.

Tem uma caixa dentro da gente que se chama coração.

E no coração tem de tudo. Tudo. Tem gente, tem dias, tem coisas. Tem coisa que dói ainda, e tem coisa que faz sentir bem. Tem gente que não presta e tem dias pra esquecer, mas também tem aqueles que valem a pena e uns momentos bons de lembrar como só. No coração cabe tudo que tu sentiste em cada dia da tua vida, e esses sentimentos às vezes ficam lá pra tu lembrares que é melhor sentir do que fingir que não quer, do que fingir que prefere ficar com as emoções antigas, com as coisas velhas. Cada um sabe o que guarda dentro da sua caixa, e cada um escolhe deixá-la aberta ou não.

A Pandora também tinha uma caixa, só que dela saíram coisas. Mas conta a lenda que a esperança, ou o não conhecimento do futuro, ficou lá dentro. A Pandora tinha uma caixa tão grande que cabiam todos os males do mundo, mas quando as coisas ruins saíram de lá pra assolar os humanos, (e essa parte do mito sou eu que conto) a esperança ganhou espaço e cresceu a ponto de encher a caixa inteira. Isso não está nos registros. A caixa de Pandora está cheia de esperança, e de tempos em tempos ela abre uma frestinha pra gente poder receber esse presente e renovar a nossa caixa. Mas se tu escolhes deixar a tua fechada, nem a esperança da Pandora pode ajudar. Quem fecha o coração faz uma escolha; e comete um engano.

No coração fechado nada entra e nada sai. Nada mesmo. Não renova, só revive - as mesas dores, os mesmos prantos, os mesmos momentos felizes e notálgicos. Aliás, é bem isso: um coração fechado é nostálgico. É preso num passado que se nega a perceber que o tempo não levou consigo os arranhões mal curados, e de tão mal intencionado que é, procura um jeito de coçar os machucados cicatrizados para que esses se abram novamente. E aí, eu digo, é triste demais.

Tem uma caixa dentro da gente que se chama coração. Ela não serve pra estoque de arquivo morto. Ela guarda tudo que tu vives, mas só mantém o que tu queres. Então não culpa o coração por ser lotado de coisa vencida, porque dessa caixa também se tiram coisas. E mais: ainda que cheia, nela tudo cabe.

E ela é grande pra caramba.


sábado, outubro 29

Veja que surpresa

Eu não sei como dizer. Acho que desaprendi a passar os meus sentimentos a personagens fictícios, a gurias de mentira, a caras que eu invento. Eu não sei mais como dizer as coisas que eu queria sem assumir a sentença com um enorme "eu", ou sem conjugar o verbo na primeira pessoa.

Veja que surpresa.

Quem sabe as palavras tenham fugido do meu alcance só pra me obrigar a reconhecer em mim tudo que eu descrevo nos outros. Desaprendi a fixar a máscara; esqueci da conjugação dos verbos. Fiz de conta não tenho medo e abri a porta para o lado de dentro.



Disse que abri a porta para o lado de dentro. Agora você vê... que surpresa.

segunda-feira, outubro 24

Tá frio, tá quente

A gente vai continuar passando a vida inteira à procura de alguma coisa que não deveria estar lá. Aí, como faz? A gente vai continuar olhando para os dois lados antes de atravessar a rua, mas não vai aprender a olhar para trás e correr de volta para dizer que  sente muito, que sente saudades - que sente alguma coisa. A gente vai fingir que não se importa e vai seguir andando, sempre em frente. 

Só que não há problema em andar para trás, de vez em quando.

A gente precisa assumir nossos joelhos ralados, admitir nossos tropeços. Vamos andar para todos os lados. A gente pode até continuar procurando alguma coisa que não está na nossa vida, mas pelo menos essa busca vai nos mover em alguma direção. E a gente precisa aprender que não importa a direção; importa é seguir caminhando. 

E chegar onde quer que seja. 

sexta-feira, outubro 21

So, tell me why

O porquê disso tudo. Dessa vontade de nada, de ser sem ser de verdade. Dessa coisa que fica parada dentro do peito da gente, pesando o coração e amassando qualquer tentativa de respirar fundo. Alguém me explica como se faz para transformar todo esse peso em alívio, em felicidade despreocupada. Em algo que valha.

Eu perdi as contas dos dias que passaram nesse sem fim sem cor. Eu perdi os dias que passaram contando as aquarelas em branco que eu tinha, e tentando preenchê-las de alguma forma - se havia uma forma. Alguém me diz por que esse vazio nunca enche; por que essas coisas que a gente não sabe nem dizer o que são insistem em se acomodar naquele canto mais frágil. Eu perdi a conta das cores que inventei para usar, só que o pigmento nunca durou tempo o bastante.

Essa vontade de mentira, que faz viver com o corpo oco, move minhas pernas e exibe um sorriso desbotado, que ainda convence muita gente. Mas me dói quando alguns de vocês não conseguem enxergar que as estruturas estão desmoronando, entrando em colapso, e esperam pelo meu pedido de socorro. Vocês sabem que eu não vou pedir. Mas eu aceito um abraço.


quinta-feira, outubro 20

Veja só

Alguém me disse que você estava muito bonito naquela roupa. Que estava desfilando um corpo bastante bem moldado e que tinha consigo um semblante tranquilo. Disseram que você parecia até feliz.

Só que eles não sabiam onde você esteve na noite passada. E achavam que me faziam mal.
Veja só.


.

segunda-feira, outubro 17

Desafio

Defina vontade.





Agora me diz por que não.

quinta-feira, outubro 13

De fora

Eu não estou disposta
a escolher um lado
Nem tomar partido,
ou juízo.
Ou ainda vergonha na cara.
Não estou disposta a oferecer a outra face
a um outro tapa, um outro corte.

Eu vou fazer de conta que não sei
das coisas
que se passam por detrás dos rostos
[que eu visto]
dos gostos
[que eu tenho]
e dos gestos, e trejeitos,
suspeitos. Culpados.

Eu não estou disposta a comprar a minha briga.

A minha vida.

E essa merda toda.


.

terça-feira, outubro 11

Vai e vem

Agora você vai se deitar ao meu lado e eu vou fingir que acreditei na sua história. A noite será longa e cansativa, mas, no fim das contas, ambos estamos sendo usados. Que seja. Vamos combinar, então, que você também pode fazer de conta que não conhece os meus fantasmas, e eu prometo que da minha boca não sairá uma palavra maldosa. Nem uma coisinha que possa te deixar desconfortável. Mas não tente fingir inocência, que esse jogo já acabou faz tempo.

Tudo às claras. Temos um acordo: você me ajuda a relaxar enquanto eu fico falando sobre futilidades, e eu ajudo a sua consciência a descarregar o peso. É uma via de mão dupla, querido.

Sempre foi.

domingo, outubro 9

Nota II

Eu poderia ter te abraçado com mais força que da última vez, e a gente teria conversado sobre todas as coisas aleatórias que vinham acontecendo. Ou talvez a gente só conversasse e quem sabe dividisse uma cerveja - e ainda seria uma boa lembrança, mesmo que a gente prefira outra bebida. Eu nunca vi problemas nas amizades que têm cores. O problema é quando a tinta começa a descascar, e ela volta a ficar em preto e branco.


Eu tento evitar a estranheza da situação, mas não depende só de mim. Que culpa eu tenho?

sexta-feira, outubro 7

Importa o oposto


Eu posso ser assim mesmo.
sentir aberto o peito, coração exposto, tapa no rosto. 
Eu posso viver desse jeito.
Sentido inverso, oposto
e esquecer das placas que orientam sobre a direção
correta.


Não sigo, incrédula
sou torta e assumo que posso ser assim mesmo
coração aberto, ferido
de corpo cansado.
Sigo mudando de esconderijo;
adaptando-me ao contrário. Arrisco.


Porque viver desse jeito eu consigo:
não posso sair é do inverso,
ou me perco
e deixo de ser, não existo.
Sou oposto. Exposta. 
Em risco




[Inconstante.]

quarta-feira, outubro 5

E então vou poder fazer as coisas que eu queria [fazer contigo]

Estou indo para qualquer lugar, com a intenção de encontrar de novo o tempo bom que passou por nós. Queria ver aquelas tardes douradas pelo sol do outono, e sentir as coisas que eu sentia na época. As coisas que não tinham nada a ver com ninguém em especial, mas comigo mesma; com o lado de dentro desse coração torto que nunca me largou. Não me leva a mal: tu sabes da importância que tens. Mas o meu problema é comigo, e já faz tanto tempo. Eu vou voltar pro ponto onde as coisas começaram a desabar e tentar arrumar a estrutura antes que ela se desfaça. Antes que eu acabe desfeita, mais uma vez.


Mas eu prometo que volto. E inteira.

sexta-feira, setembro 30

Pares

As duas mãos deslizavam pelas curvas e pressionavam cada centímetro, como se quisessem moldar uma cópia. Como se quisessem levar nas palmas as informações gravadas, precisas. A pele parecia gostar do gesto, porque, ainda que fria, arrepiava-se delicadamente. Sentia a tensão dissipar-se a cada pedaço de corpo em que as mãos chegavam, e deixava seus músculos relaxarem displicentemente. Leve. Doce.




O par de mãos sabia por onde ir.
Em movimentos ímpares.

terça-feira, setembro 20

Das verdades

Eles ainda preferem as histórias felizes, com lágrimas de sucesso e marcas de vitória. Eles ainda preferem os gritos de prazer aos murmúrios de lamentações, porque são humanos e fracos como sempre serão. São humanos, e amam, e sofrem e querem ser felizes [quem sabe]. Eles sempre preferem os contos de fadas, ainda que nada daquilo uma dia lhes vá acontecer.

Eu contei algumas verdades e nenhum deles me deu bola. Eu contei que felicidade existe em momentos, não na vida inteira, e eles taparam os ouvidos. E contei que amores quando passam levam consigo nossos melhores pedaços, mas não encontrei viva alma que admitisse ter um pedaço seu faltando. Eu mostrei meu coração ferido para provar que era verdade, e todos desviaram os olhos.

Eles ainda acreditam nas bonecas de porcelana que não se quebram e nas bailarinas das caixinhas de música que dançam a vida inteira. E eles acham que eu sou uma descrente. Me julgam perdida, sozinha em mim mesma. Que pena. Eles que ainda acreditam nas princesas e não acreditam em mim; acreditam nos reinos distantes e adoráveis.


Mas eu sei que os príncipes já morreram. E as princesas fugiram com os criados. Só que eles preferem dormir o sono dos loucos e enxergar passarinhos cantantes nos bosques queimados.


Que pena. Eles ainda preferem mentiras.

domingo, setembro 18

Platônico

Como você faz isso? É sempre tão fácil achar sorrisos nesses teus olhos. E ainda que tente, não passo um só dia sem vê-los. Em fotos, ou onde der. Sabe, tem sempre aquela pessoa que nos faz querer ser alguém melhor. Como você faz isso? Porque é fácil gostar de ti. E lembrar das coisas que nem aconteceram e ter certeza de que seria realmente ótimo se fosse verdade.


Eu só queria ver os teus sorrisos em mim. Como eu poderia lhe dizer isso?

quinta-feira, setembro 15

Tentei

E de tanto que corri perdi o passo


o compasso


e a compaixão.


E perdi a mão


a noção 


e um tal de vai e vem. Que só vai.

sábado, setembro 10

Coletora de prantos

Ela o encontrou sob efeito de um choro sentido, magoado. Estendeu os braços e amparou os olhos úmidos com seu lenço perfumado, sentou-se ao lado do corpo choroso do amigo e deu três tapinhas nas costas do pobre - como se dissesse "eu sei, eu sei". Ele sabia que ela não sabia o porquê de nada, mas confortou-lhe o fato de ela saber o quanto ele precisa dela naquele momento. 

[Em tantos momentos.]

Ela tinha certeza de que tristezas precisam ser divididas, mas não sabia como fazer para dividir as suas. Ela não queria também a tristeza dos outros, mas a tirava dele e a jogava fora - para longe de ambos. Tristeza já basta a própria - ela não se tornaria uma colecionadora de lágrimas alheias. Ela não choraria o teu choro, mas aliviaria a tua dor. 



Havia métodos de livrar as pessoas das coisas tristes - métodos que nunca funcionaram com ela - mas eram eficientes com outros corações. Com ele, usava um especificamente: escrevia as dores do amigo e enviava para um endereço qualquer, sem destinatário nominado, e sem esperança de que chegasse a qualquer lugar. Mandava para longe para ter certeza de que a carta se perderia no caminho. Escreviam juntos os prantos doloridos e, então, um deles estaria livre do pesar. Ela enrolava a carta e selava um episódio sofrido de alguém. Alguém que não era ela.

Nenhum método nunca lhe fizera efeito. Esforçava-se, visivelmente, mas a menina não sabia dizer o quanto doía o que. Ela tentava e punha-se a rabiscar o papel, mas o voto de silêncio da mão não deixava nada sair de dentro dela. As canetas não escrevem nada além do que os dedos dizem. Mas os olhos choram muito mais do que a consciência entende. Ela ainda não aprendera a abrir o coração para alguém que pudesse retirar de lá o peso das lágrimas.

[Por isso ela segue sorrindo desse jeito que você conhece.]

terça-feira, setembro 6

Caminho de pedras/perdas

E foi tão rápido que eu já nem acredito. Sabe quando você está indo na direção certa e de repente uma pedra gigantesca cai na sua frente? Ou melhor, cai na sua cabeça. Cai e quebra tudo, e ainda espalha todo o teu senso de felicidade no chão; faz tanto estrago que você já nem consegue se lembrar que direção estava tomando.

Para onde eu estava indo, mesmo?

Eu perdi o caminho. Desaprendi a caminhar. Parece que agora as coisas acontecem tão rápido que engatinhar - como eu tenho feito - não é nem de perto suficiente para alcançá-las. Alcançar aquelas coisas, entende? Aquelas coisas que a gente passa um tempão buscando até o dia que desiste e fica feliz com o que cai no nosso colo, sem nem recordar qual era o desejo no começo. Sem ter certeza - apenas esperança - de que aquilo que você tem é o que vai fazê-lo feliz.

Você é feliz?

Eu sinceramente não quero saber. Eu perdi a crença no meio dos estragos da pedra. Eu perdi o passo e o fôlego. E foi mais rápido de que eu pensei; mais cedo que o previsto. Eu juntei os cacos e não foi a mesma coisa, aí fiquei assim, quebrada; que nem brinquedo de aniversário que estraga no mesmo dia que é ganho - que desaponta e é esquecido em seguida.



Você achou o seu brinquedo novo?



sábado, setembro 3

Hora certa

É agora que você segura a minha mão com força. É agora que você não fala nada; não fala nada e me puxa de encontro ao seu peito e me faz continuar respirando devagar. Então nesse momento eu vou deixar que você me carregue de volta pra vida que eu não quero mais, depois de me convencer que não tem outro jeito se não ficar com ela. Depois de explicar com todas as letras todos os motivos para tantas novas chances; você vai bancar o vendedor e eu vou comprar o seu argumento. Eu vou comprar essa vida que você tanto fala. E vou fazer de conta que gosto.




Agora é a hora que eu finjo que sou essa que você vê.

domingo, agosto 21

A vez das coisas todas

Então foi a tua vez de cumprimentar todos os colegas, caminhar até a mesa, usar o chapéu e pegar o canudo. Foi a tua vez de olhar aquela plateia cheia de gente orgulhosa dos seus queridos e agradecer aos teus pelo apoio, e vê-los se emocionando com a tua vibração, com a tua felicidade. Foi, então, a tua vez que respirar fundo e encarar todos que um dia duvidaram - e encarar a ti mesmo, por ter um dia pensado que tropeçaria e ficaria pelo caminho. Foi o dia do teu sorriso, do teu grande momento.

Então eu chorei com a tua felicidade e continuei te aplaudindo. Por todas as pequenas coisas que te levaram até ali. Por todas as grandes coisas que tu representas para mim. Que orgulho, pai.

quinta-feira, agosto 11

Pelas coisas que forem

São duas as coisas que me fazem acreditar em ti: o teu aperto na minha mão sempre que eu preciso prestar atenção em alguma coisa no caminho, enquanto andamos pela rua; e o teu abraço forte sempre que me sinto desse jeito meio sem jeito, meio sem mim. Eu confio meus atos nas tuas palavras porque és tu quem consola minhas lágrimas quando elas rolam desvairadas por qualquer motivo sem importância.

Eu às vezes pergunto por que será que tu protege tanto alguém que tira de ti mais do que te dá. Eu me pergunto por que tu és assim, tão tu, tão... tão meu. Mas eu confesso que não preciso dessas respostas. Preciso só de ti, pelo motivo que seja.

domingo, agosto 7

Resgate

Vira o sol brilhar com toda a energia que nunca tivera, e estendera-lhe a mão para ajudá-lo a puxar seu corpo para cima. O sol chegou e de repente resolveu que ela não poderia mais se esconder nas sombras do própria alma. O sol a fez erguer os olhos do chão, encher o peito de oxigênio e viver os dias de maneira menos pesada. Menos dolorosa. O clima frio compensado pelos raios da estrela completavam a outra metade do corpo, tentando ser mais forte.

Ela abriu os olhos para ver; abriu os sentidos para o mundo. Não importava o que sentiria, não seria mais a boneca de plástico. Tinha carne e ossos. E um imenso sistema nervoso.



Faltava-lhe apenas o coração.

quinta-feira, agosto 4

O que ninguém te disse

O que você não sabe é que eu estive ali. Joguei minhas coisas para o alto e corri para alcançar as mãos que me seguraram naquele dia antes desse. Eu escolhi por mim; por nós dois eu escolhi a vida que você queria tanto, e da qual eu fugi com tanta urgência. O que você não sabe é que eu não sabia o tamanho da besteira que estava fazendo; você não sabe o quanto eu lamentei por cada passo para longe. Eu estive lá, naquele dia em que o sol brilhava tão forte e que parecia me oferecer um final feliz.

O que você não sabe é que nós queríamos o mesmo final. O não final.


O sol sorriu para mim naquela manhã e me sacudiu da cama; me disse que seu trem partia em meia hora. E eu corri mais do que podia, eu respirei mais rápido para ter mais força. Eu corri atrás da felicidade prestes a partir. O que você não sabe é que eu estava lá. Mas eu perdi o trem. O que eu queria lhe dizer é que não faz mal, e que quando tu voltares eu vou correr mais rápido.

domingo, julho 31

Cruzada

Chegara novamente à linha que separava as coisas. As coisas boas das coisas não tão boas; das coisas moribundas. Encontrava-se tão próxima da escolha errada que já nem mais sabia por onde voltar para antes da linha. Para antes do tempo em que a linha não existia, ou nunca fora vista.

Repensara seus passos, refizera seus caminhos calmamente. Como foi que chegara ali? A parte do percurso que a deixara onde estava não lhe era conhecida. Não lhe era amiga. Não era parte dela. A linha a encarava novamente, como se a desafiasse a cruzá-la. Como se olhasse em seus olhos e sem nenhuma palavra a convencesse de que era mais forte do que ela própria. Convenceria aquele par de olhos a entregar-se ao lado moribundo da linha e a reconfortar-se nos braços dos seus medos secretos, com os olhos tão cerrados que não mais abririam-se. Aqueles olhos desafiados.

Chegara novamente à linha que determinava as coisas. Que dizia se os passos iriam para frente ou se ficariam estacionados; ou se iriam para outra direção depois da divisória, que não chegava no lado agonizante mas que seguia rente a ele. Desafiou os passos. Cruzou a linha.


Andaria até chegar ao topo do precipício.

quarta-feira, julho 27

- Bom dia, Dia

Bom dia aos pedidos e às preces ignoradas, às amizades distanciadas. Bom dia aos passos trôpegos, sem direção nem sentido. Bom dia aos sentidos perdidos, aos faróis apagados, aos carros assassinos. Dia dos olhos vidrados, dos sonhos, dos braços sem vida; das bocas mordidas. Bom dia aos dias de sempre. Da vida de sempre. Da vida de ontem igual a das próximas duas semanas; igual aos dias de dois meses atrás e iguais aos próximos anos de vida. Bom dia, mundo real. Bom dia, rotina de merda.

Bom dia, tristeza.

sexta-feira, julho 22

Nota I

Eu vi os carros passando e neles, junto às janelas, as crianças dormiam. Pensei nas pessoas passando pela vida inteira sem sorrisos nem janelas. Sem as crianças que eram.

Seria ruim deixar as crianças dormindo enquanto brincamos de vida.


Elas sempre souberam brincar melhor que a gente.

segunda-feira, julho 18

Da crença, da palha e da promessa

Ainda acreditava naquilo. Em tudo; ainda que fosse só por mania de ser bobo, mesmo. Ainda acreditava que o coração não era de palha, que poderia ser dado ao fogo e ser tomado de volta vivo, sem marcas, sem tê-lo desfeito em cinzas. Aquilo tudo que dissera a ela não era mentira; ele via a verdade refletida nos lábios que nunca foram seus.

Por mais que fosse distante, e difícil, e improvável, ele acreditava naquilo. Um dia haveria de sentir-se cumpridor da promessa que fizera a si mesmo. Um dia a faria crer em tudo aquilo também. Agarrou-se ao calor do coração já entregue ao fogo, prendeu-se na esperança e na promessa, e atirou-se de peito aberto no abismo que sempre parecera tão alto e tão perigoso. Ele acreditava naquilo.

Ele acreditava nela. E nos lábios que haveriam de estar junto aos dele no dia que cumprisse sua promessa.

quinta-feira, julho 7

You and your heavy heart

Você sabe que não haverá quem caiba num coração apertado feito esse. Você pode fingir e fechar os olhos, mas quem acreditará nesses beijos vazios? Digo porque acredito que isso não está claro aqui: a quem você acha que está enganando?


Eu não vejo futuro em corações cercados. E em mentes cercadas. Eu não acredito nos sonhos descritos a caneta. Você me respondeu com um "sim" uma pergunta com alternativas. Com quem você achou que estava falando?

sexta-feira, junho 24

Dos muros internos

De tudo me sobraram receios e algumas certezas. Mas o quão sólidas são elas, não sei. Assim como não digo que ainda temo de verdade tudo que ficou comigo naquele dia. Tudo que eu deixei que ficasse aqui dentro. Aqui nesse maldito lado de dentro.

Do lado de dentro eu conheço pouco. E também confesso que não quero saber dele tanto. Sei bem o quão perigoso é arranhar as paredes que construo. Os muros sempre têm um propósito de existir, e os meus não são como os de Berlim. São muros de proteção, não de separação. São as paredes da minha segurança. Aqui do lado de dentro tem até arame farpado; vai que eu resolva que quero pular pro outro lado. Pro lado mais escuro do lado de dentro.

Das certezas que me restam, creio em duas: serei forte até onde der, e curiosa enquanto for saudável.

sexta-feira, junho 17

Covarde

Pegou seus braços e seus beijos, seus colos e seus medos, pôs na mala e partiu. Levou consigo um retrato, dois pares de camisas e três outras mudas de roupa. Não iria para tão longe, nem demoraria tanto tempo. Pegou seus olhos e seus cheiros e guardou ao lado da carta que um dia ela lhe escrevera. Sentiu o calor da casa fria. Sentiu o alívio acomodando-se no canto da sala e acenando levemente com a mão. Sorriu de volta e partiu.

Preparou seu discurso, escolheu suas palavras; tentou bravamente ser maldoso e dizer tudo tão rápido quanto ela lhe dissera seu adeus, mas sabia que falharia assim que pusesse seus olhos sobre os olhos dela. Sobre ela. Na verdade, sabia que quando ela estivesse sobre ele não haveria palavras a serem ditas. Sua sintonia nunca fora expressa em texto. Sintaxe. Mas sentidos.

Quando a viu, pegou seu braços e seus beijos, a pôs no colo e partiu. Sem levar novas camisas - e deixando a muda de roupa pelo chão - ambos foram longe, demorados. A mistura dos cheiros, a cumplicidade nos olhos. Sem cartas ou palavras, apenas retratos de lembranças.


Retratos guardados em prateleiras invisíveis.
E de mentira.
Porque ele nunca teve coragem de pedir explicações sobre aquela carta.

quarta-feira, junho 8

Ponto

Te disse tudo ontem, não disse? Então por que me olhas ainda desse jeito? Pensei que quisesses saber da verdade, mas se eu soubesse o efeito que te faria, teria ficado com minha boca bem fechada. Juro que já te disse tudo. Por que ainda me olhas com essa cara?

Expliquei meus motivos, e dei até mais satisfações do que tu mereces; fazer o que se me sinto assim, em dívida contigo. Mas eu disse - e juro a vida! - tudo que havia para contar, e esperava de coração ganhar um sorriso, em troca. Em troca dessa vida lavada e do avesso que eu levo contigo. Por ti.

Eu sempre tento me adaptar. Mas que mania essa que tu tens de moldar-te tal e qual os outros. Essa eu te disse que não quero. Deixe de me olhar com essa cara e procure a tua própria para me encarar. Disse tudo. Assim acabo.


.

sexta-feira, junho 3

Carta

Sinto muito, meu filho, por ter de dizer as coisas que vou lhe falar assim, dessa forma fria e de longe, mas ainda que não haja mais tempo preciso que tudo fique quitado entre nós. Eu juro que não planejei tudo isso - muito menos isso em especial - mas quis me certificar que eu teria a chance de te contar as coisas que ficaram para o final. As coisas que eu deixei no final.

Não são muitas coisas, na verdade - sinto desapontá-lo. Há uma casa fria na região da serra, outra vazia no litoral, dois apartamentos esquecidos na periferia e outro que costumava ser bastante acolhedor há vinte e cinco anos atrás. Há também um punhado de dinheiro, algumas jóias no cofre do banco e uma coisa que deveria ter te contado há muito tempo atrás. Me dói saber que demorei tanto para perceber que devia te dizer isso todos os dias... Sabe-se lá quantas coisas boas deixei de ganhar por causa do meu descuido. As coisas que ficam, no final, não são muitas; mas espero que as minhas netas possam usufruir de uma vida confortável por causa delas.

Perdoa-me, meu filho, se não tive coragem de ser para ti o pai que tu és para as tuas meninas. Perdoa-me por ter endurecido minha sensibilidade, por ter deixado as portas fechadas entre nós por tanto tempo. Eu que trabalhava tanto e quase não te via, acreditava estar fazendo o melhor que era possível para a nossa família. Eu posso passar a eternidade pedindo desculpa e talvez não consiga pedir perdão por todos os erros que cometi. Pelos erros que cometi com a tua mãe, e pela falta de atenção à vida que ela pôs fim. Pelos erros que cometi contigo e com a tua esposa. Por não ser o avô que minhas netas mereciam.

Perdoa-me por dizer-te tão tarde, meu filho, mas a verdade é que eu sempre te amei mais que a mim mesmo. Espero que o teu coração aceite essa verdade como a mais pura que eu poderia dizer, e que tu jamais deixes de dizer isso às tuas filhas. Eu te deixo um punhado de coisas, meu filho, e uma montanha de arrependimentos que tu conheces bem. Não posso sair de onde estou para dar-te um abraço, mas quero que sinta teu coração aquecido com todo o amor que um pai é capaz de dar a um filho; com o amor que eu tive por ti durante a minha vida toda.

Sinto muito, meu filho, por ter sido tão covarde.

Desejo que tenhas a vida completa, como eu poderia ter tido.
Com todo amor que havia no meu coração quando te vi pela última vez,

José Antônio Praga

domingo, maio 29

Metades

Eu entrei de novo em casa e o chão ainda não estava firme sob meus pés. Passara, mas o coração ainda batia muito rápido e muito forte. As pernas tremiam, teimosas, e as mãos insistiam em suar frio. Tinha ficado tudo pela metade.

Uma revista aberta em cima da mesa da cozinha, uma televisão ligada na sala, um portão aberto no quintal e um pedido de socorro desesperado. Meia dúzia de gente assustada procurando por chaves, saindo correndo com os carros disponíveis. Três carros saíram; um outro carro e seu motorista eram o ponto delicado. Socorro. Assalto. Tiro. Atiraram nele.

- Ela não consegue me falar!

É o momento que tudo some e não interessa se está frio, se tu estás mal agasalhado, se tu podes ser útil de alguma maneira. Só se pensa em fazer alguma coisa. E que coisa bem difícil de se fazer que é esperar por notícias. Mas espera-se. E reza-se. Seja lá qual for a crença. Se pede.

Por favor, por tudo que há nesse mundo. Que esteja bem.

Chegam as notícias e ainda se está parado naquele segundo suspenso, naquele universo paralelo de angústia, de medo, de possibilidades e de metades. Das coisas que ficam ao meio. Das vidas que ficam na linha. Chega a notícia e ela é boa. Graças.

Eu entrei de novo em casa e tudo ainda estava pela metade. A revista aberta na mesa e a conversa que não tinha terminado, a televisão falando qualquer coisa - a vida esperando para ser retomada. Para ser vivida, completa. A gente sente que perdeu as forças, mas sabe que agora está tudo bem. Vai ficar mais ou menos como era antes. Mais ou menos, porque quando se para na metade e espera para ver se vai poder seguir, não se encontra exatamente onde a vida foi interrompida.
Mas sabe-se que ela segue e as pessoas desesperadas podem ser reconfortadas. Podem respirar fundo de novo, porque não ficarão pela metade.

Ainda estamos completos.

sexta-feira, maio 27

Trato

Se eu fingir que não temo, tu me prendes naquele sonho bom, como antes? É que eu cansei disso tudo, sabe. Disso de bancar a atriz dia e noite, de fingir ser brincadeira as coisas que eu quero de verdade. De fingir ser de verdade. Então se eu disser que não tenho medo da vida, tu me levas pra longe dela? Não me julgues. Sabes que eu não sei direito o que fazer. Mas me faço, então, de forte e te digo para acreditar. Façamos um trato:

- Se eu fechar os olhos, tu prometes que ela passa sem me machucar?

segunda-feira, maio 23

Nostalgia - I

Hoje eu sonhei contigo, e não foi sonho bom. Estavas jogando o futsal, que tanto gostas, e de repente foste atingido. No sonho eu insisti que tu viesses comigo - porque tu não querias sair da quadra por nada; devia ser final de campeonato - e te carreguei pro hospital. Tinhas a perna quebrada. Te fizeste de forte e não reclamaste de dor nem uma vez, mas tampouco abriste a boca para falar coisa alguma. Eras tão orgulhoso quanto me lembro. Aliás, tu eras exatamente do jeito que me lembrava, de quando eu te vi pela última vez, há dois anos atrás. Não me dei conta de que já faz tanto tempo, até hoje.


Acordei nervosa. Não gosto de quando sonho algo ruim para pessoas que não vejo constantemente. Parece com um aviso, como um lembrete. Algo como "se tu ainda te importas, por que ficas tão longe?" e eu não tenho uma boa resposta para dar. Eu ia te ligar, juro que ia. Mas teve aquele dia que eu decidi que tu não fazias mais parte da minha vida, e apaguei teu número da memória.

Maldito dia.

sábado, maio 21

The Queen

Cada movimento expressivo em seus menores detalhes; cada centímetro do seu corpo vibrando junto com a sinfonia da orquestra, milimetricamente sintonizados. A batida tomava conta do coração de vidro da bailarina: batia pelas paredes e ecoava pela corrente sanguínea porque música e dançarina eram parte de uma coisa só. Eram parte de um único organismo vívido, límpido, sincrônico. Cada movimento era produto da reação espontânea e orgânica da menina que se via plena nos braços da melodia.

A bailarina quebrada da caixinha de música consegue dançar. Mesmo que lhe falte uma perna.

Seguindo os saltos dos movimentos delicados das mãos, seguem-se os olhares perdidos da bailarina à plateia. Tanta luz lhe cega. Seus braços abraçam o vazio dos olhos e suas pernas a lançam para o alto. Para mais alto. Para além dos sonhos de cera derretidos. Todos os pedaços do seu corpo agitam-se pela emoção da liberdade. Pela música que a alimenta. Pelo coração que se preenche, finalmente.

A bailarina se entrega sem reservas. E dança. É livre.

Ela ergue seus olhos do vazio e fixa-os no horizonte. Ela inventa os passos e deixa a coreografia para quem a quiser. Liberta-se dos movimentos programados e vive a música com a intensidade que é justa. É frenética. A bailarina do coração de vidro transforma-se em fera; assustadoramente encantadora. O vidro se quebra com o coração que agora pulsa - sem ter conserto.


A bailarina sente a si mesma. Desprende-se da sua plateia e do seu plano. Ela vive.


sexta-feira, maio 20

Das causas

Foi por causa das coisas que eu não disse quando olhei nos teus olhos e vi que não havia reflexo de mim na beirada. Por causa dos olhos que claramente gritaram "tu não moras aqui!" quando me viram. Pode ter sido por causa do meu silêncio na tua boca. Muda de não ser, muda de nascença. Na verdade estava calada por não pertencer a quem a questiona. Por não se importar.

Foi por causa da minha ausência em ti que eu notei que tu não mais me pertencia. Mas acho que foi mesmo por causa dessa minha necessidade de descobrir a causa das coisas.
As coisas boas não se explicam. E eu sempre quero respostas.


As coisas boas só acontecem.
Eu deveria ter pensado nisso.

sábado, maio 14

Contagem

Quantas perdas tu choraste?

Talvez tu nem mesmo recordes, ou se quer tenha notado. Mas eu não vou mentir, senhor. Me faço quase uma coveira. Carregando comigo uma pá e dois olhos perdidos, ando pela minha vida enterrando desesperos, enterrando gritos e sentimentos. Tantos sentimentos. O senhor talvez pense que eu sou exagerada, mas acredite quando lhe digo: sou tão morta quanto meus corpos. Sou tão pouco orgulhosa das coisas que enterrei que coveira não me cabe. Sou assassina, pois condenei-lhes. Sou a causa.

Quantas perdas tu já sofreste, senhor?

Quantos corpos tu choraste? Quantas vidas - das tuas próprias - tu interrompeste? Acho que talvez nunca paraste para pensar, mas quem sabe tu consigas te recordar da última vez que trocaste um futuro possível per medos covardes. Ali tu mataste. O senhor assim o sabe, agora, que o fiz tão vil quanto eu. Eu que sou a coveira dos meus destinos - e das minhas vontades. O senhor se faz tão enlutado quanto a minha pessoa. És culpado também.

De quantos sonhos tu já acordaste prematuramente? E a quantos amores te negaste? Quantos mais enterraremos até que larguemos as armas, senhor. O quanto mais permitiremos nossa vida ser o cemitérios que hoje é. Quantos mais dos nossos corpos choraremos a perda. Quantos mortos em nossos passados. Quantos?


Quantas vidas tu choraste, senhor? E em quantas vidas tu sofreste?

sexta-feira, maio 6

Mea culpa

Eu disse pra ti que fechasses os olhos. Eu brinquei com a tua orelha enquanto tu tentavas, a todo custo, esconder aquele sorriso de mim. Pensas que não vi, e até fingi que não o tinha, mas o fotografei com os meus olhos pra guardá-lo na minha estante mais tarde. Aí eu disse pra ti alguma coisa que se diz só quando se tem certeza, e ouvi a tua resposta com os ouvidos atentos daqueles que estão com medo. Eu tinha medo, mas tu o tiraste de mim. E eu gravei as tuas palavras pra depois repeti-las na minha canção. E aí tu me disseste pra não largar a tua mão e foi o que eu fiz: segurei tão forte que guardei o teu toque na minha palma. Segurei também o teu cheiro. E guardei tudo na minha sala de tesouros.

Eu peguei de ti tanta coisa que nem notei quando tu me tirou a razão. Então não me estranha por ser assim tão boba: tu bem sabes que a culpa é tua.

sexta-feira, abril 29

O todo do nada

Das botas à blusa, do shorts às unhas: dos olhos às vistas alheias. Por causa dos olhos à lápis - borrando o preto nos contornos que estavam gravados nas tuas pálpebras - fizeste besteira. O preto dos olhos contornados do desejo que tu alimentavas a deixaram assim. Inatingível. E parecia que fora assim desde sempre.

Nem te lembras o quanto perdeste do tanto que foi. E do tanto, todo ele perdido por culpa da personificação idealizada de um corpo inteiro. Que tinha um par de pernas de mentira. Uma dezena de unhas enfeitadas. Uma garota de nada.


Não sabes o quanto perdeste porque não se mede felicidade que ainda não existe.

sexta-feira, abril 22

And all the lies you said, who did you save?

As coisas poderiam dar certo agora. Tinha certeza que tudo seria melhor a partir do momento em que se deixasse levar pela parte de si que não sentia pena, que não se sentia mal por quem fazia questão de tornar um núcleo da sua vida um pedaço de merda. Desistira. A essência que carregava falara mais alto.


Não era Miss Simpatia, de qualquer forma.



sábado, abril 16

"Give Me The Strength"

E é desse jeito que eu me desmancho. Eu pensei que pudesse ser até fácil engolir tudo isso e seguir no meu caminho sozinha. No meu caminho, no meu mundo distante desse outro mundo de merda. Só que não é bem assim, e vocês sempre me disseram isso. Como e fui boba em não ouvi-los antes. Ah, céus, como fui ingênua.

Mas eu confesso: tenho sorte por tê-los comigo. Vocês movem o meu futuro para longe dos lugares mais escuros, e, verdade seja dita, eu não saberia nem mesmo andar sozinha no meio de tantas sombras. Mas vocês não são sombras; eu posso vê-los, e tocá-los, e segurar nas mãos que vocês me estendem. Eu posso enxergá-los até mesmo de olhos cerrados. E o mais importante é que eu posso sentir o coração de vocês próximo do meu, e eu sei que o sangue que corre por eles é o mesmo. Vocês me dão a força que eu, sozinha, nunca teria.

E é desse jeito que eu me refaço. Entendendo que pode ser sim mais fácil se eu segurar com toda a minha força a lembrança de vocês dentro de mim. Se eu puder vê-los mesmo longe dos meus olhos; se puder senti-los a meio passo de distância ainda que haja quilômetros entre nós. Vocês transformam o meu mundo em um lugar menos sofrível, e o meu coração num lugar menos gelado.

E é desse jeito que eu me refaço. Com as partes que vocês me dão e com as minhas partes que vocês salvam. Vocês me dão a força que eu jamais teria.

My friends, we've seen it all
Triumphs to drunken falls
And our bones are broken still
but our hearts are joined until
time slips its tired hand into our tired hands

We've years 'til that day
and so much more to say

You give the strength to me
a strength I never had


[Give Me The Strength - Snow Patrol]

------x------


Para pessoas que têm permissão e livre acesso ao meu mundo particular. Não existo sem vocês.

quarta-feira, abril 13

Tango

Uma perna,

depois a outra.

Mais um passo e para:

por dois tempos.

Um pé, o mesmo,

o outro e de novo.

Uma perna, depois a outra,

um passo e pronto. Um braço solto e um punho firme.


Segura, caramba.


Uma perna, depois a outra; agora um abraço e para.

S e g u r a

firme;

mais um passo

pro lado,

pro outro,

pro lado.

Uma perna, depois a outra.

A outra, a outra, a outra.


A outra, seu filho da puta.


Minhas pernas, depois [as da outra.]

meus braços, meus lábios e meus enganos.

Teus e da outra. [A outra, a outra e a outra]


Tango.

domingo, abril 10

Hard to explain

Tem vezes que a gente quer e é pra agora. Ou quer mas é só por uns dias - ou pra vida toda. Mas de repente a gente não quer mais. Só.
Não quer porque passou a vontade. Assim.

Mas eu preciso te dizer que tem vezes que a gente mente. E mente só por mentir.
Brinca de falar verdade brincando, de falar mentira a sério. Mente de ser o amor que não sente e de ter vontade do que quer. Tem vezes que a gente mente porque é mais fácil. Assim. Mais sincero mesmo. Mente porque tem vezes que a gente quer pra sempre, mas diz que quer pra depois - e que o depois já passou.

Então eu te digo que talvez eu não queira mais, e que, quem sabe, eu possa mentir. Porque tem vezes que a gente só decide: escolhas das vezes que a gente resolve que é a nossa vez de jogar.

E essa é a minha vez.


[Hard to Explain - The Strokes]

sexta-feira, abril 8

Everybody's looking for something

Alguns deles não estão nem aí, mas outros fazem questão de enxergar teus detalhes e expô-los, apontá-los. Alguns deles passam e nem mesmo te olham, mas a maioria deles não consegue parar de desejar a tua presença em qualquer lugar. Dizem que eles nem sabem direito o que querem.

Mas eu sei exatamente o que eles querem.

E eles transpiram seus desejos, sem pudor. Alguns vão continuar passando sem notar, mas os outros não conseguirão largar o vício. Esse vício que te procura porque te pertence; esse vício de alguns deles. De todos eles.

Esse vício de ti.

Some of them want to use you...
Some of them want to get used by you...
Some of them want to abuse you...
Some of them want to be abused...

quinta-feira, abril 7

Happy Belated Birthday


Eu perdi. Quando eu cheguei todas as luzes já haviam sido apagadas e o bolo ficara meio comido sobre a mesa. Havia balões, uma toalha vermelha e copos descartáveis coloridos, uma faixa atrás da mesa e alguns cartões sobre ela. Mas eu perdi. Eu cheguei atrasada e perdi...

Eu perdi o teu aniversário. Parabéns pra mim, cada vez mais inacreditavelmente esquecida das coisas que deveriam importar.
Foi mal, meu Inacreditável Mundo. Ano que vem eu prometo que não vai ser assim. Ah, vai, pelo menos tu tens que acreditar em mim.


------.-------***.***-------.------

Dia 23 de março foi aniversário de 3 anos d'O Inacreditável Mundo, e eu acabei deixando passar. Tudo bem que março não foi um bom mês, mas isso não justifica... Então, atrasada eu ainda assim registro:




Obrigada a vocês que passam ou que já passaram por aqui. Vocês me fazem acreditar que a palavra sufocada vale tão pouco quanto o choro engolido; por isso eu falo, eu escrevo, eu choro e não me importo. Eu sei que vocês entendem perfeitamente o que eu estou falando.



Parabéns pra nós!

domingo, abril 3

Chroma

É maneira como as coisas aconteciam, o jeito como as coisas terminavam. Sempre torto, longe do que fora planejado. Será que os planos que fizera poderiam, um dia, sair daquela folha pálida e imaterial na qual a tinta da sua caneta imaginária rabiscava as irrealidades que traçava para o futuro? Um dia, quem sabe, poderia rasgar aquelas folhas e deixar a caneta guardada, porque não precisaria mais pintar universos paralelos simplesmente por conseguir se sentir feliz no qual vivia. No universo cinza e acolhedor que um dia encontraria.

Cores não precisam estar em todos os lugares. Cansa os olhos; cansa tanto que de repente nem mais os tons pastel e nude são percebidos, aí sobra uma cor de sujo, de errado. Uma cor de tristeza. No universo cinza as cores são boas, porque quando usa-se cores são cores que significam coisas. E essas coisas acontecem da maneira certa e terminam com um grand finale. Com um torto que desvia da obviedade mas nunca da felicidade. Um torto cinza e colorido que não precisa de uma folha pálida. Um desvio de significação, sem planos.




Precisa-se de cores.

sábado, abril 2

Do propósito

A gente sempre sabe quando alguma coisa é tirada do lugar nos nossos cantos preferidos. A gente sempre sente quando alguma coisa é removida, porque aquela coisa tinha um propósito de existir e de estar ali, exatamente naquele lugar. Eu sei que você pensou que eu não iria reparar - a gente sempre tem a ilusão de achar que sabe qual é o melhor modo de organizar as coisas dos outros - só que dessa vez, não tinha como eu deixar de perceber.

Eu senti a falta, e não tive o que colocar no lugar.
Eu não pude substituir. E eu sei que você fez de propósito.

A prateleira dele ainda está vazia. Entra em contato caso você decida devolver o coração que roubou.



PS: Você podia ter levado algumas fotos, em vez disso.

quarta-feira, março 30

Morto-vivo-vivo

É quase como cair. Como sentir que aquele machucado nunca vai cicatrizar e ter plena certeza de que não há band-aid suficiente no mundo para tantos arranhões e feridas reabertas. É quase como cair todo santo dia; como receber uma bofetada de uma vida filha da puta.

Tantos hematomas me fizeram sensível. Mas sensível por dentro, sabe? Muito te enganas se pensas que eu me mostro abatida assim, pra qualquer um. Precisa ter visto o meu tombo, me emprestado um esparadrapo ou até mesmo ter cuidado de mim; ter me ajudado a levantar. Precisa conhecer esse meu coração tosco por dentro e saber que cair não me impede de seguir com o meu plano.

Eu caio e levanto porque tenho certeza de que vou cair de novo e também levantar de novo. Eu sei que as feridas vão abrir de tempos em tempos, porque não há pontos que segurem os rasgos que me fizeram. Assim, eu caio todo maldito dia e supero o medo porque sei que ele me ensinou a ser mulher - e das boas. Eu supero.

Eu supero e sigo com o meu plano.

terça-feira, março 29

I'll turn it off

É parte de mim, eu já não tenho o que fazer: não sai. Não sai, não descola, não apaga... E eu já cansei de puxar. Entrou. Grudou. É algo meu, da minha essência, da minha sina.

Do meu inferno pessoal.

Faz parte dos soluços, das vezes que eu me sinto desse jeito. Faz vontade de sumir no fundo do copo e nunca mais chegar perto de tudo isso. Me bateu. Me bagunçou. Não sei dizer o que isso trouxe de bom. Não trouxe o bom. Então não vai ficar em mim.

Não quero saber se não sai, se não desenrola, se não me larga: vou arrancar fora! Vou tirar, com pele, com tudo, com coração ou não. Estou forçando, e agora eu sei que posso ganhar. Alguma coisa está acontecendo; estou em processo. Numa luta livre.

Sob escombros, mas ativa. Sem mais soluços ou copos preenchidos com melancolias: sem mais essa essência vadia. Agora eu bati. Eu congelei. Essa parte de mim está sendo desligada; eu acelero o processo.

Eu vou encerrar o inferno.




Porque eu resolvi que te desligo de mim.

domingo, março 20

Condicional

Caso você não venha,
não me avise e
nem me conte. Não me diga.

Caso você desista,
não me obrigue. Não me briga.
Não me leve
ou me largue

Não me mate [aos poucos]

Caso você não venha,
não exista. Apenas
não exista.

terça-feira, março 15

Das perdas

A parte de mim que se foi não pensou duas vezes antes de me abandonar. Ela nem me deu tchau, nem ao menos olhou para trás antes da virar as costas e seguir até a parte de ti que se ia ao longe. Ela se foi, assim, sem cerimônias ou longas despedidas; apenas se desprendeu e sumiu.

Eu tive vontade de ir atrás dela, mas desisti. Não valia a pena. Se ela se foi junto com a parte que te deixou, era tempo perdido recuperar o tempo perdido das perdas e das partes. Principalmente das partes. Das tantas partes perdidas, feridas, tão orgulhosas, nenhuma delas voltou.

Por causa das minhas partes desprendidas, me sinto sumida... meio fugida de mim.

segunda-feira, março 7

Trincheira

Pusera uma pedra sobre as coisas. Pesada, esta empurrou para baixo todas as emoções que estavam na superfície e, não demorou nada, elas morreram enterradas sob um manto rígido e frio.

Frio. Muito frio.

Já não bastasse a nevasca de dentro, precisava ainda encarar a tempestade de fora. Munida de mais pedras e mais pesos ela abriu a porta de um corpo ferido. Entrou. O corpo não a repeliu, e até assustou-se com tamanha precaução.

- Eu não vou lhe fazer mal – disse o corpo à carregadora de pedras.

- E eu já ouvi isso antes – respondeu ela, abraçada às pedras que pesavam mais que seus braços.

Preocupou-se em forrar o coração do corpo com as pedras que trouxera, e largou os pesos na consciência do mesmo. Pusera a neve pra dentro, deixara a tempestade de fora. A frieza, contanto, não deixara sua casa. A nova casa era como a velha, porém, outra.

Tão fria quanto a velha, mas mais forte, preparada. Era bom ter se certificado de que tinha pedras suficientes para a temporada.

- eu vou lhe fazer mal – disse a invasora ao corpo – porque é por isso que precisei de uma nova casa. É assim que eu vivo, de casa em corpo, de corpo em casa. Eu não tenho escolha.

- nesse caso – respondeu o corpo, resignado – ao menos tire o peso da minha consciência, e deixe que eu viva quando você estiver cansada.


Eram pedras de sonhos e pesos de culpa. Quem ela deixara para trás?

sábado, fevereiro 26

Abrigo

O quarto acomoda tudo que está nele: móveis, objetos, uma pessoa e seus universos paralelos. Às vezes duas pessoas, como era o normal há alguns anos atrás, mas três ou quatro apenas extraordinariamente. Essas terceira e quarta pessoas devem ser convidadas, no entanto, se não, não são bem-vindas. Sabe como é, há coisas valiosas naquele espaço. Coisas valiosas como privacidade, descanso, segurança e um porta-máscaras. Ninguém precisa usar disfarces no quarto, porque ninguém que não estiver autorizado verá a verdadeira face.

A verdadeira face. Nem todo mundo pode aguentar a essência dela e por isso nem todo mundo pode entrar no quarto. A primeira regra é não invadir. Porque quem invade, fere. E quem fere, não é querido. A segunda regra é não se ofender, porque quem se ofende não entende, e quem não entende invade, e aí fere, e aí não é querido. A terceira regra é não pedir para ser convidado, porque aí se ofende e não entende, e então invade e etc... O quarto é um abrigo. E é habitado por anos de promessas.

Você entra se for permitido. Não peça para ser convidado. E não invada: os estranhos não são esperados. Se entrarem, devem sair. E se quiserem voltar... esqueça, eles não podem.

quarta-feira, fevereiro 23

Quem aprendeu a crescer

O menino vira a mãe com um homem que não era seu pai. Duvidara dos próprios olhos, desafiara sua capacidade de reconhecer pessoas em situações nebulosas, mas não podia negar que vira a mãe com um homem diferente de seu pai. Ele vira. E isso bastava para que o mundo caísse sobre sua cabeça.

Como contaria ao pai o que vira? Como diria à mãe que sabia que aquele homem não tinha o mesmo cabelo grisalho e farto de seu pai? Como saberia que seus olhos não estavam sendo enganados pela imaginação tirana, infantil, que dominava seus pensamentos? Como diria a qualquer um o que vira se não sabia direito se tinha visto de fato?

Como. Essa era a questão. Como uma criança fazia para ser sincera sem ser má? Sempre achei que crianças chegam a ser cruéis em sua sinceridade desmedida. Chegam a ser crianças demais.
Eu não sei o que o garotinho fez, mas sei que seus pais ainda estão juntos. E sei que ele ainda olha para todos os homens que se aproximam de sua mãe - inclusive os transeuntes - com olhos desconfiados e maldosos. Sei que ele envelheceu rápido demais.

Suspeito que ele tenha aprendido a guardar segredos. E a mentir também. Mas mentir para si mesmo.
O que sei é que ele cresceu rápido demais.