domingo, março 23

Ele disse que não ia...

Ele foi embora. Abandonou o colo da mãe, o conforto do lar, a comida pronta e sempre gostosa, a cama quente, o carinho dela. Ele foi embora. E disse que não ia mais voltar.

Era madrugada, ele já estava de pé. Pisando leve e com cuidado ele arrumou suas coisas, na verdade, não arrumou muitas coisas, não queria levar nada que lhe lembrasse sua antiga vida. Tudo ficaria para trás. Na mochila velha e surrada havia duas camisetas, um par de calças, sua carteira e algumas cuecas. Estava pronto para partir quando pensou que lembraria de sua mãe quando sentisse frio, ela sempre lhe recomendava levar um agasalho para o caso de esfriar enquanto estivesse na rua... Abriu a mochila, colocou um casaco lá dentro, virou as costas para a casa e se foi. E disse a si mesmo que não ia mais voltar.

A rua estava vazia, exceto por um ou outro homem que andava pela rua, meio torto, e alguns carros cheios de gente voltando de alguma festa, ou de qualquer lugar. Isso não era importante para ele. Aquela gente podia olhar para ele e falar o que quisesse, não o atingiria. Mas aquela gente nem olhava para ele, se não estivesse ali eles nem notariam. Lembrou-se de sua mãe novamente. Ela sempre lhe dizia para não dar ouvidos aos que não queriam o bem dele, para seguir seu caminho, sem atalhos, para fazer somente o que julgasse certo. Pensou estar fazendo isso. Achava que estava. Resolveu sumir. E prometeu que não voltaria mais.

Fazia 1 hora que havia deixado uma vida para trás. Foram 19 anos de vida boa e feliz. “Bons tempos...” ele pensava, como se já fizesse anos que mudara. Estava pronto pro que viesse, ou achava que estava. Pensou na sua mãe. Não conseguia parar de pensar nela. Ficaria sozinha, sem nem um bilhete que lhe servisse de consolo, perguntando-se o porquê. Ela não descobriria o porquê, nem ele sabia o porquê. Aí então começou a se perguntar: “Por quê?”.

Sentou-se na calçada, colocou a cabeça entre os joelhos, olhando fixamente para o chão, sentiu-se um nada. Nem ao menos tinha um motivo para sumir. Sentiu-se um mal agradecido, um desnaturado. Sempre tivera tudo, nada de luxos, mas nunca lhe faltara nada. Sua mãe lhe criara sozinha. Com esmero. Não queria se gabar, mas se dizia um rapaz muito bem educado, gentil e responsável. De fato o era. E talvez por isso quisesse sumir. Não tinha motivos para se revoltar, tinha liberdade para dizer tudo que queria, fazer tudo que queria e quando queria, mas nem por isso abusava. Ele mesmo ditava limites. E agora estava indo embora, mas pensou que, talvez, pudesse voltar. Daqui a dois anos ou mais. Daqui a duas horas, ou menos...

O relógio marcava 5:30. “Daqui a meia hora a mãe levanta.”. Pensava em sua mãe de novo. Ela levantaria às 6:00, faria café preto e colocaria o pão pra assar. O pão de forno que ela fazia era “de lamber os beiços”, como ele mesmo costumava dizer a quem perguntasse. Mas ele não teria mais isso. Não comeria mais o pão de forno da sua mãe, ele estava indo embora, mas, talvez, pudesse ficar.

Eram 6 horas e 30 minutos quando ele chegou em casa. Sua mãe já estava de pé, como de costume. O pão estava no forno e o café já estava pronto. Ela olhou para ele, com cara de quem recém acordou e ainda não sabe direito o que está fazendo. Olhou para os olhos dele, dos olhos para a mochila e de novo para os olhos dele. “Onde tu estavas, filho?” disse ela com o mesmo tom de voz, amável e carinhoso de sempre. “Lugar nenhum, mãe.”respondeu ele, com tom de culpa e remorso. “E pra que carregar uma mochila pra ir pra lugar nenhum?” perguntou a mãe com ar confuso para um guri com cara de criança perdida. “Pra carregar o casaco, mãe. Perdi o sono, fui caminhar e lembrei que tu sempre diz pra eu levar um casaco. Aí peguei.”, responde o guri, tentando ser convincente. “Devia ter vestido o casaco. Tem cerração na rua, e tá esfriando... Larga a mochila, vem tomar café. O pão já vai ficar pronto.” diz a mulher, voltando a usar o mesmo tom carinhoso. Ele voltou ao quarto que há algumas horas atrás tinha abandonado para sempre. Deixou a mochila em cima da cama e voltou para a cozinha.

“Sabe filho, achei que tu tinhas fugido de mim...” diz a mãe, com ar de quem acha graça no que acabou de falar. “Que besteira mãe. Por que eu fugiria??” responde o guri que acabara de voltar para o colo da mãe, o conforto do lar, a comida pronta e sempre gostosa, a cama quente, o carinho dela.