domingo, janeiro 30

Da vontade

Eu nunca pensei que fosse sentir essa vontade absurda de ser. Simplesmente ser. Sem restrições, sem travas, sem cinto de segurança. Nunca pensei que o que eu mais queria fosse ter tudo - sim, eu disse tudo - fora - sim, eu disse fora - do meu controle. Eu cheguei a tentar começar a dizer isso pra ti, mas achei que tu fosses pensar que era só mais uma das minhas crises, e não me levaria a sério. Tu, algum dia, deixaste de me levar a sério?

Eu não disse que estava farta. Eu engoli a minha vontade de ser porque simplesmente não me cabia o direito de querer mais do que me fosse possível. Eu quis abandonar a minha pose, cortar as minhas fotos ou apenas retirar-lhes a cor; porque a minha vontade de ser me fez notar todos os tons de cinza que eu tingi de amarelo choque e rosado celeste - se isso se quer existe. Eu percebi que deixei de ser uma pessoa melhor no momento em que me esforcei para ser boa. Suficientemente boa aos olhos alheios. Não apenas aos teus. A qualquer par de olhos. Tu, algum dia, me levaste a sério?

Porque, agora, eu sei que alguma coisa não está certa. Alguma coisa está realmente muito torta. Como eu faço para ser sem deixar de manter a minha vontade guardada em um lugar seguro? Não a vontade de ser - essa eu preciso libertar - mas a vontade de desistir de ser boa. Eu não quero ser boa para ti. Eu quero ser boa para mim, por enquanto.

E eu espero que tu estejas me levando a sério. Mesmo.


sexta-feira, janeiro 28

Sobre seguir

Se a minha vida inteira for mentira, eu posso esquecer que você não apareceu e seguir adiante. Eu posso fingir que não me importo com a tua falta de sorrisos, com a tua falta de presença; porque se a minha vida inteira for mentira, eu posso ter o direito de viver de verdade a partir de quando eu quiser. Eu posso deixar a tua falta para trás, e seguir.

Se a minha espera não passou de esperança, digo que deixo-a mofando em algum canto morto de mim. Eu posso fingir que tenho um canto morto, e pôr você lá. E fingir que não espero mais por ti.

E deixar a esperança pra quem tem um sonho bom.

E deixar a espera pra quem sabe que não se cansa antes de decidir seguir adiante. Eu posso acreditar que a vida ainda não me impõe um ponto crítico, e que eu posso seguir para onde a tua falta não faz diferença. Para onde a tua presença não faz diferença.

sábado, janeiro 22

Pieces

Então você tem um jeito estragado de fazer as coisas. Tudo bem, para mim. Você até me convence de que está bem, quando eu pergunto e você responde isso e ainda me dá aquele sorriso quebrado. Você não fala muito, não divide o que passa aí dentro, carrega tudo e reclama só para si. Você não é o tipo de pessoa que se importa por ter que aguentar sua própria vida sem espalhar um pouco para cada amigo - ou qualquer estranho. Todos a sua volta lhe têm, mas a tal de recíproca não existe: porque você nunca fez questão, admita. Ninguém lhe entende melhor do que você mesma - mas é bem irritante quando as partes não concordam entre si. Quantas partes você tem?

O pior de tudo é que talvez você esteja melhor assim. Fazendo as coisas do seu jeito estragado e carregando sempre o mesmo sorriso quebrado. Você está danificada. Você é. Quantas delas dentro de você estão? Quantas partes você tem, afinal?




sexta-feira, janeiro 14

Sobre a moeda

O que ela mais queria era mergulhar de novo naquele ambiente perfeitamente controlado de que tanto gostava. Sem imprevistos, sem problemas; só ela e todas as variáveis calculadas e avaliadas com a frieza necessária para tomar decisões importantes.

Decisões. Por que diabos tinham que haver tantas? E por que todas tinham que envolver coisas tão preciosas, afinal?

O que ela mais queria era trazer todo mundo para o seu mundo perfeitamente controlado, onde todos estariam aos cuidados da análise minuciosa dos seus olhos atentos: não para controlá-los mas sim para protegê-los das escolhas mal feitas de sua mente - por vezes conturbada.

Escolhas. Por que elas sempre vêm acompanhadas da possibilidade do "felizes para sempre" e também com o "queimando no inferno até o fim dos tempos"?

A história das duas faces da moeda. Você joga uma moeda pra cima e ela cai com uma das faces à mostra - mas a outra face permanece ali, só que escondida, esperando o momento em que a moeda ganhará os ares novamente, louca para dar o ar da sua graça.


O que ela mais queria era que a maldita moeda tivesse uma face só.

sábado, janeiro 8

O jeito

Ele tinha aquele jeito de quem não se importa, sabe? Como quem já tem (ou teve) tudo que queria e agora já não dava mais bola pro que ia e vinha da sua vida. Mas é mentira, acredita. Eu pensei que ele fosse melhor nessa coisa de esconder sentimentos, mas os olhos e as linhas de expressão do rosto dele nunca deixaram que eu me enganasse: ele queria mais era dizer muita coisa, mas engolia junto com o nó que às vezes aparecia na garganta. Ele parecia não se importar, porque fica mais fácil aceitar as coisas ruins quando a gente não se importa.

Fica mais fácil de disfarçar os ciúmes, de sorrir amarelo, de respirar fundo com o coração apertado. Mas eu disse pra ele deixar de fingir. Ele não é de pedra, mas a gente endurece a sensibilidade se fica evitando transparecer as coisas... porque tem uma hora que, de tanto evitar transparecer, a gente deixa de sentir. E isso não é bom.

Eu disse pra ele mudar esse jeito, ser mais quente por dentro. Mais "sim, eu me importo" e "não, não está tudo bem" quando for necessário, porque assim fica melhor. Fica mais próximo. Mais humano.



Mas aí ele olhou pra mim e devolveu:
- E como tu poderias saber disso?

quarta-feira, janeiro 5

Perfume

Ela tirou os sapatos e o vestido que usara na festa na noite passada; já era tarde - ou muito cedo, se você prefere. Você apenas observava, imóvel, enquanto ela caminhava na ponta dos pés até o chuveiro e finalmente tirava as duas últimas peças de roupa que ainda estavam cobrindo-lhe o corpo. Queria aproveitar o instante que tinha para apreciar-lhe as curvas e gravá-las na memória.

Ela soltou os cabelos e deixou que o cheiro misto de perfume, bebida e cigarros impregnasse o ambiente. Você ainda não se movia, postado em frente à porta, apesar de sentir o cheiro do tabaco que até ontem lhe causava repulsa; mas agora não mais, porque era o cheiro temporário dela.

Você caminhou até o chuveiro, sem tirar uma única peça de roupa pelo caminho, porque sabia que ela lhe pouparia o trabalho de despir-se. Um bom banho, era do que precisava. Um banho que o transformasse o perfume-tabaco-alcoólico dela em sabonete-perfume. Perfume que você usaria, até ser tarde de novo. Até ser tão tarde que chegaria a ser cedo.

Você usaria o perfume sem o vestido e sem os sapatos.