quinta-feira, maio 31

Água doce

Afundara. E agora encontrava-se submerso num lago de pensamentos confusos; contraditórios com seus atos e com  reflexo de seus desejos. Envolto pela roupagem do compromissos que não sabia mais se queria para si, não pôde libertar os braços para que esses trouxessem seu corpo de volta à superfície. Queria alcançar um pedaço de qualquer coisa que o fizesse flutuar, mas sua própria consciência já estava pesada demais; cansada demais.

O lago era o dela. E tinha a mesma cor que a que lhe aparecia nos olhos. Mas ele esquecera de despir-se das roupas antes de entrar, e quando essas terminaram de se encharcar acabaram pesando no corpo. Para o peso do que trouxera, perdera a chance. Os braços não conseguiram desenrolar-se.

E os abraços permaneceram presos. Afundara.

Afundara sem ter a chance de respirar fundo, uma última vez. Uma última olhada para a luz do dia, no lado de cima da água. Seguia caindo para o fundo do lago mais doce que se dispusera a entrar quando terminou de soltar o ar que prendia, e parou a pulsação sanguínea. Afundara; e a consciência se esvaía à medida que o fundo chegava mais perto.

Mais perto.

Mais perto.


Mais



Fundo.

terça-feira, maio 29

Nota XII

Tu não devias deixar os outros perceberem. Tu devias seguir olhando pra baixo, para não precisar encarar ninguém e assim mostrar o que está por trás desses olhos - o que está espremendo esse coração. Tu não devias deixar os outros perceberem que ele recomeçou a bater; e quem sabe seja esperto abafar o som das batidas - que eu até já estou ouvindo, aqui de longe. Tu não devias abrir tanto os olhos.

Ou o peito.


O que aconteceu com o teu bom senso?

segunda-feira, maio 28

Sobre prazo e pena

Quantas vidas até esse suspiro virar sorriso, e iluminar os dias que eu passo soprando? Quantas vidas ainda passam sem que haja dias inteiros; além dos tantos dias a menos. Tanto quanto pode ser errado e torto, e feio, e feito para mim? E desses tantos, quantos mais aguento? Se são todos seguros, quantos mais perfuro para abrir uma brecha, e ser flecha que corta no fim?

Quantas vidas até que esse suspiro respire um abraço bem forte, sem vazio nem beijo perdido... Quantas vidas até eu desistir de ser mentira?

Quantas vidas eu mantinha sem abraços nem verdades; tantas outras mais, incompletas. Quantas delas valeram suspiros sufocados, sem beijo nem flecha. Nem sorriso no fim.


sexta-feira, maio 25

Ambas

Verdade era que o coração sentia. E sentia mais do que o esperado. Verdade era que os braços estavam procurando o que abraçar, e que os abraços queriam ser distribuídos para uma só pessoa. Ou duas.

Droga; uma ou duas.

Verdade era que o coração sentia demais. Que bastavam aquelas poucas horas para despertar as vontades do outro dia, daqueles sorrisos que escapam sem nem perceber. Verdade era que o coração sentia, sim, e por isso fundia a lógica com a incerteza da pulsação alterada, toda vez que havia abraços e sorrisos de uma certa pessoa. Ou de uma das duas certas pessoas.

Mas tinha que ser uma ou outra.
Droga.


quarta-feira, maio 23

Balada

E se a vida quiser brincar contigo?
Te fazer de boba, te jogar
de um lado para outro, e de novo
e de novo. E quem sabe,
mais uma vez.

E se a vida quiser te ver dançar?
Se ela escolher a música, e te jogar
de um lado pra outro, e pra outro e
pro outro. E quem sabe?
E quem sabe que outro?
Quem outro?

E se a vida quiser? Dancemos.
De novo.


E de novo, mais uma vez.
Quem sabe.

domingo, maio 20

Jogados

E daí vai lá, pega meu tabuleiro e toca pra cima. Pega meu tabuleiro e rearruma as peças, bagunça de novo e joga ele fora. Me dá um tabuleiro novo e espera que eu adivinhe as regras do jogo. E daí quando eu entendo, você vem e me diz que o que vale agora é o inverso do oposto. Me tira as instruções das mãos. Corta as regras.

E então vem manso e me quebra as peças. Substitui meus peões por pinos e dados. Troca minhas cartas por fichas mais bonitas. E vem de novo e me diz para pensar na jogada; diz pra eu fazer um movimento.

Eu faço.

E daí eu digo que foi com a chave inglesa, no salão de festas, mas não tenho um sujeito pra nomear. Não me restaram sujeitos nesse jogo novo que você propôs. Eu digo que foi você no salão de festas, mas você insiste que não estamos brincando disso.  Insiste que o culpado não está no tabuleiro. Que não há mais tabuleiro.



Mas daí vem manso de novo e me dá a corda.
E diz que vai ser na cozinha.


sexta-feira, maio 18

Afinal

[...] Era como ter vida do lado de dentro. Era como ter a face menos pálida, as olheiras menos fundas, os olhos menos tristes e o sorriso mais verdade. Era como se o lado de dentro vivesse de novo, porque pesava menos.


Só que daí acabou o conto. Acabou na hora em ele disse "apesar de tudo". Acabaram-se as risadas do dia e tudo ficou meio raso de novo - menos as olheiras. O conto não era de fadas, e não implicava um final feliz. Oferecia um final de contos modernos, onde cada um fica do seu lado e só retira as barreiras de vez em quando.

Aquele final que não tem ponto. Que não tem o "fim" escrito na última linha. O final de quem esquece que existe um lado de dentro, ou de quem quer evitar chegar ao ponto de abrir as portas para os visitantes, porque eles podem acabar pisando na grama. O final que vem depois do "estou aqui" e que deixa a história ao acaso.

Aquele final que deixa tudo no ar, sem saber se o conto era em volume único ou em série.


quarta-feira, maio 16

Redemoinho tudo

Virado. Num turbilhão enlouquecido de coisas indo, voltando e acontecendo de novo. E dando errado, dando muito certo e depois dando errado mais um pouco. Virando um milhão de sentimentos certos em pontos de interrogação, perfeitamente desenhados por um traço tremido, temeroso.

Foi virado. Foi tudo junto.

E veio num turbilhão ensandecido que já ia e vinha, de lá para cá e depois para cima. E daí caía, para ser resgatado no meio do caminho e empurrado de volta. Para o lado que fosse. Desde que fosse virado.

Estava num turbilhão desregulado de desejos indecisos.

Desejados no meio da queda; esquecidos enquanto havia razão. Veio o turbilhão e virou a vida inteira em tão pouco tempo que de mesmo não havia nada. Havia passos maiores que as pernas. Havia dúvidas maiores que a consciência. Veio o turbilhão e fez o estrago.

Foi virado. Foi tudo junto.

terça-feira, maio 15

Desabotoa

Isso, atira aí. Não vai cair, não, nem sujar; não te preocupa. Te preocupa em abrir essa minha blusa, que tem botões demais. Larga esse casaco em qualquer lugar, não tem problema. Depois a gente acha ele de volta. Vou largar tua camisa aqui mesmo, e daí tu pode voltar a te ocupar com a minha blusa. Eu cheguei a pensar que ela realmente tinha botões demais, mas achei que seria divertido te ver nessa ânsia. E tá sendo, sabe. Não, eu não estou sendo ruim... não me olha desse jeito. Ela sai por cima, se tu puxar. Viu só. Deixa os botões pra lá.

Tira. Atira ali.
A gente acende a luz depois e acha tudo; não te preocupa.

segunda-feira, maio 14

Sobre a linha

É só porque estava perdida, visto que não costumava ser boba do jeito que vinha sendo. Era porque a vida se rebelara e mostrara pra ela caminhos felizes, todos de uma vez só, mas esquecera de dizer que apenas um ou dois podiam ser tomados como destino. É só porque agora ela estava em cima da linha que separa o orgulho dos desejos, e a razão dos sentimentos mais simples, que não conseguida decidir entre preservar a imagem ou assumir um coração burro e desinteressado.

Ainda que ela estivesse farta das imagens.
Ainda que tivesse consciência que o coração não era tão desinteressado assim.

sexta-feira, maio 11

Rarefeito

Só precisava de ar. Que enchesse os plumões por completo e que fizesse sentir o alívio de um suspiro pleno. Apenas ar, de um entorno normal. Que inflasse o peito para que o coração deixasse de brigar por espaço dentro do corpo, e mostrasse possível uma vida regida pelo seu compasso. Pela batida acelerada de uma vida; daquelas com emoção.

Queria espaço para livrar o aperto. Queria só o aperto de um par de braços em torno da cintura. Queria deixar o coração livre em si, e sentir todo o ar necessário entrando e saindo do corpo.

Queria deixar de ver lágrimas saindo dos olhos, pois eram tantas que o ambiente virara mar. E quanto mais água, meno ar. E menos ainda. E, então, menos um pouco.


Talvez mergulhasse e esquecesse que não era sereia.

Nota XI - sobre peso

E se for pele. E se for peso. E se tentar amassar um coração que nem está ali. E se for pele, qual o problema no beijo leve. E se for mais, o que então está acontecendo?

Se for pele eu lido. Se for peso... se for peso eu despeço. Repenso. Se for pele eu lido.


Se for peso, que seja pouco.


quarta-feira, maio 9

Do tempo cansado

Foi no tempo em que ela agia como se não quisesse nada, como se não fizesse questão. Andava como quem não pedia o abraço e nem oferecia um beijo. Vivia como quem não quisesse nada, como quem dava de ombros e fingia que não se importava. E nesse jeito ela achou que não fazia diferença, mesmo. E assim ficou mais longe. Mais como quem espera menos.

Foi durante esse tempo ruim, nesse tempo vazio, que ela andou cansada das  paredes cada vez mais pálidas da casa. E cansada desse tempo igual - que passa sempre do mesmo jeito, todos os dias - ela disse que bastava. E desse tempo ruim ficou enjoada. Enojada. E desse tempo ruim fez passado.

Foi no tempo em que ela agia como se não quisesse nada que percebeu que tinha era medo de assumir o que queria de fato. Medo de fazer questão de algo que não estava ao alcance. Mas foi nesse tempo que ela disse que bastava.


E se bastava, cansou-se do cansaço. Foi-se o tempo que temia.

terça-feira, maio 8

Afetado

Resolvera deixar o plano. Resolvera que se danasse de vez, que tudo, dali por diante, seria do que jeito que fosse - desde que fizesse sorrir. E fazia. Então deixara o plano na gaveta e resolvera que seria do jeito que fosse.

Seria simples.

Seria menos complexo, menos futuro. Decidira que mais hojes fazem do presente uma dimensão possível e saudável. Mais hojes faziam sorrir. Produziam sorrisos. E os amanhãs que se danassem. Queria mais era desconstruir a complexidade de uma personalidade antes sólida - antes. De sólido ficara o plano, que já era firme como água.

Seria simples.


Resolvera que se danasse. Que, enquanto hoje, haveria sorrisos.

sábado, maio 5

Suspensas

Estavam lá, flutuando em torno da sua cabeça, todas as coisas feitas, buscadas, construídas. Estavam lá porque agora dependiam do empurrão que vem de fora, do aval do universo que permite - ou não - os planos saírem do papel. Estavam lá, flutuando em torno da sua cabeça, simplesmente porque não podiam deixá-la em paz.

Estavam lá, incentivando uma imaginação emocionalmente instável.

Flutuando na frente dos olhos, insinuando possibilidades. Todas suspensas ao seu redor, esperando o universo se manifestar. Esperando as respostas, portadoras de boas notícias. As boas notícias que flutuam acima das coisas que flutuam em torno da sua cabeça.


Todas as coisas feitas, buscadas e construídas. Todas suspensas. Todas as coisas que o universo não parecia estar disposto a permitir, até alguns dias atrás.

quinta-feira, maio 3

Plano [im]perfeito

Você não tinha pensado em tudo. Mas achou que tivesse e se deu o direito de sonhar alto. Achou que tivesse cuidado de todos os detalhes, que tivesse organizado tudo direitinho, e que em algum momento - quando a coisa fosse sair de controle - haveria alguém que caridosamente iria lhe dizer que estava tudo bem, porque a ajuda viria.

Só que você não pensou em tudo.

E você não lembrou que talvez esse alguém não exista. Você não lembrou que houve um aviso, lá no início, que dizia que seria tudo por sua conta. Que você ia ter de se virar, e que o azar era seu. Foi nisso que você não quis pensar, porque achou que se tudo desse certo, dobraria certas pessoas e então tudo se resolveria.

Só que você não quis pensar em tudo, não é?

E agora já começou a sonhar meio alto demais. Mas você foi avisada que o azar seria seu. Então prepara o corpo, porque a queda pode doer bastante. Te prepara para abrir mão de uma série de sonhos, porque as coisas estão para acontecer e talvez aquela pessoa caridosa não venha lhe socorrer. Prepara o corpo, porque a queda vai te quebrar inteira.

E você não tinha pensado nisso. Tinha?


terça-feira, maio 1

Sobre peças, portas e chaves

Eu disse aquele dia que a vida tinha aberto algumas portas, mas depois de passar por uma me quebrei e pensei que estive enganada. Eu disse que uma porta tinha sido aberta, e me recusava a voltar por ela porque havia muito mais coisa no jogo. Eu pensei que o bom era aproveitar as portas enquanto elas oferecem passagem, porque não se pode prever quando a porta vai aparecer de novo no tabuleiro.

Mas na verdade a lição que me ensinaram foi outra.

Aprendi que mais importante que aproveitar a chance, é pensar se era isso mesmo que se queria. Eu aprendi que só porque uma porta se abre, não significa que nós nunca mais podemos voltar dela. Eu entendi que nem toda porta mostra um caminho bom, e que se recusar a voltar é burrice. Aprendi que portas abrem todo tipo de caminho. E que sou eu quem decide qual delas é melhor pra mim.

Independente da posição das peças no jogo.

Eu disse aquele dia que a vida tinha aberto algumas portas, e quase me precipitei entrando pela primeira que havia destrancado. A lição que eu aprendi é que existem possibilidades. Mas que quando uma aposta não dá certo, não se pode fechar os olhos para as outras, porque em todas as portas há mais peças. E cada peça muda o jogo da sua maneira, só que umas acabam anulando as outras.

Na verdade, a lição que me ensinaram é que eu não preciso esperar a abertura das portas.


Aprendi que eu preciso é ter as chaves, e então abrir a porta que eu quiser.