sexta-feira, junho 24

Dos muros internos

De tudo me sobraram receios e algumas certezas. Mas o quão sólidas são elas, não sei. Assim como não digo que ainda temo de verdade tudo que ficou comigo naquele dia. Tudo que eu deixei que ficasse aqui dentro. Aqui nesse maldito lado de dentro.

Do lado de dentro eu conheço pouco. E também confesso que não quero saber dele tanto. Sei bem o quão perigoso é arranhar as paredes que construo. Os muros sempre têm um propósito de existir, e os meus não são como os de Berlim. São muros de proteção, não de separação. São as paredes da minha segurança. Aqui do lado de dentro tem até arame farpado; vai que eu resolva que quero pular pro outro lado. Pro lado mais escuro do lado de dentro.

Das certezas que me restam, creio em duas: serei forte até onde der, e curiosa enquanto for saudável.

sexta-feira, junho 17

Covarde

Pegou seus braços e seus beijos, seus colos e seus medos, pôs na mala e partiu. Levou consigo um retrato, dois pares de camisas e três outras mudas de roupa. Não iria para tão longe, nem demoraria tanto tempo. Pegou seus olhos e seus cheiros e guardou ao lado da carta que um dia ela lhe escrevera. Sentiu o calor da casa fria. Sentiu o alívio acomodando-se no canto da sala e acenando levemente com a mão. Sorriu de volta e partiu.

Preparou seu discurso, escolheu suas palavras; tentou bravamente ser maldoso e dizer tudo tão rápido quanto ela lhe dissera seu adeus, mas sabia que falharia assim que pusesse seus olhos sobre os olhos dela. Sobre ela. Na verdade, sabia que quando ela estivesse sobre ele não haveria palavras a serem ditas. Sua sintonia nunca fora expressa em texto. Sintaxe. Mas sentidos.

Quando a viu, pegou seu braços e seus beijos, a pôs no colo e partiu. Sem levar novas camisas - e deixando a muda de roupa pelo chão - ambos foram longe, demorados. A mistura dos cheiros, a cumplicidade nos olhos. Sem cartas ou palavras, apenas retratos de lembranças.


Retratos guardados em prateleiras invisíveis.
E de mentira.
Porque ele nunca teve coragem de pedir explicações sobre aquela carta.

quarta-feira, junho 8

Ponto

Te disse tudo ontem, não disse? Então por que me olhas ainda desse jeito? Pensei que quisesses saber da verdade, mas se eu soubesse o efeito que te faria, teria ficado com minha boca bem fechada. Juro que já te disse tudo. Por que ainda me olhas com essa cara?

Expliquei meus motivos, e dei até mais satisfações do que tu mereces; fazer o que se me sinto assim, em dívida contigo. Mas eu disse - e juro a vida! - tudo que havia para contar, e esperava de coração ganhar um sorriso, em troca. Em troca dessa vida lavada e do avesso que eu levo contigo. Por ti.

Eu sempre tento me adaptar. Mas que mania essa que tu tens de moldar-te tal e qual os outros. Essa eu te disse que não quero. Deixe de me olhar com essa cara e procure a tua própria para me encarar. Disse tudo. Assim acabo.


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sexta-feira, junho 3

Carta

Sinto muito, meu filho, por ter de dizer as coisas que vou lhe falar assim, dessa forma fria e de longe, mas ainda que não haja mais tempo preciso que tudo fique quitado entre nós. Eu juro que não planejei tudo isso - muito menos isso em especial - mas quis me certificar que eu teria a chance de te contar as coisas que ficaram para o final. As coisas que eu deixei no final.

Não são muitas coisas, na verdade - sinto desapontá-lo. Há uma casa fria na região da serra, outra vazia no litoral, dois apartamentos esquecidos na periferia e outro que costumava ser bastante acolhedor há vinte e cinco anos atrás. Há também um punhado de dinheiro, algumas jóias no cofre do banco e uma coisa que deveria ter te contado há muito tempo atrás. Me dói saber que demorei tanto para perceber que devia te dizer isso todos os dias... Sabe-se lá quantas coisas boas deixei de ganhar por causa do meu descuido. As coisas que ficam, no final, não são muitas; mas espero que as minhas netas possam usufruir de uma vida confortável por causa delas.

Perdoa-me, meu filho, se não tive coragem de ser para ti o pai que tu és para as tuas meninas. Perdoa-me por ter endurecido minha sensibilidade, por ter deixado as portas fechadas entre nós por tanto tempo. Eu que trabalhava tanto e quase não te via, acreditava estar fazendo o melhor que era possível para a nossa família. Eu posso passar a eternidade pedindo desculpa e talvez não consiga pedir perdão por todos os erros que cometi. Pelos erros que cometi com a tua mãe, e pela falta de atenção à vida que ela pôs fim. Pelos erros que cometi contigo e com a tua esposa. Por não ser o avô que minhas netas mereciam.

Perdoa-me por dizer-te tão tarde, meu filho, mas a verdade é que eu sempre te amei mais que a mim mesmo. Espero que o teu coração aceite essa verdade como a mais pura que eu poderia dizer, e que tu jamais deixes de dizer isso às tuas filhas. Eu te deixo um punhado de coisas, meu filho, e uma montanha de arrependimentos que tu conheces bem. Não posso sair de onde estou para dar-te um abraço, mas quero que sinta teu coração aquecido com todo o amor que um pai é capaz de dar a um filho; com o amor que eu tive por ti durante a minha vida toda.

Sinto muito, meu filho, por ter sido tão covarde.

Desejo que tenhas a vida completa, como eu poderia ter tido.
Com todo amor que havia no meu coração quando te vi pela última vez,

José Antônio Praga