sábado, março 21

Era algo que talvez fosse

Há tanto tempo um sorriso completo, preenchido, não aparecia no rosto dela. Era sempre a mesma, por todo o tempo, mas não era como era... ou sempre fora. Talvez alguma coisa tivesse acontecido ou deixara de acontecer. Não sei como dizer e talvez esteja equivocada, mas ela não parecia feliz.

O dia e a noite eram a mesma coisa. Não sabia se dormia o dia inteiro ou se sonhava acordada mesmo, mas ela nunca estava aqui; não como nós estamos, presenciando e vivendo coisas. Ela vivia num mundo paralelo, numa dimensão que era só dela e da felicidade dela. O lugar onde as coisas aconteciam da forma que ela queria que fossem, onde um sorriso pleno nunca deixava seus lábios.

Mas sorria por dentro, apenas. Nunca por fora. Nunca para os outros. Talvez fosse tão fria como o gelo, mas desmoronasse com poucas palavras. Ninguém sabia dizer o que havia de errado com ela, nem mesmo ela; por realmente não saber, acredito.

Era o que era, mas não como sempre fora.

domingo, março 8

A mentErosa.

Estava tudo na cabeça dele. Tudo que ela fazia, tudo que ela dizia, tudo que ela queria. Às vezes, quando fechava os olhos ele via Ana Clara sorrindo para ele, com o sorriso mais lindo que ele já vira na vida. Ele a imaginava entrando pela porta da sua casa, largando a bolsa pesada e os livros da faculdade sobre a mesinha de centro e sentando-se ao lado dele no sofá, aconchegando-se sobre seu peito e o envolvendo com os delicados braços que Deus lhe dera. O perfume dela fazia com que perdesse os sentidos e se entregasse àquele simples prazer de abraçá-la e respirar o ar ao redor dela.
Abriu a janela para apreciar a maravilhosa noite que fazia. Deixava que a lua banhasse seu rosto com a mesma luz que banhava o dela.

Ana Clara entrou, largou sua bolsa e os livros da faculdade sobre a cômoda do telefone e ligou a TV. Tirou os sapatos de salto alto e bico fino para deixar o sangue fluir livremente em toda e qualquer parte do seu corpo e colocou os pés sobre a mesinha de centro, sentindo uma estranha e gostosa sensação de liberdade. Era sexta-feira.

Ele, da sacada do seu apartamento podia vê-la em qualquer parte do apartamento dela, exceto no banheiro. Desejou estar em frente a ela, massageando os lindos e pequeninos pés que repousavam sobre a mesinha. Ela o recompensaria com outro maravilhoso sorriso e diria que precisava dele tanto quanto ele a queria por perto, porque o amava. E ele seria tão feliz como nunca imaginara que alguém seria capaz de ser.
Mas estava tudo na cabeça dele.

Ana Clara voltou-se para a porta quando percebeu que alguém havia batido. Abriu um sorriso quase ao mesmo tempo que abriu a porta. Esticou seus braços para receber o abraço que lhe davam, comprimindo seu peito até quase não poder mais respirar. Ela pegou o namorado pela mão e o levou até a sacada, sentando-se com ele nas almofadas que ficavam ali e deixando que a lua os iluminassem e refletisse no sorriso dela.

Ele saiu da sacada e voltou para o sofá, onde continuava com a sua Ana Clara debruçada sobre seu peito e olhando-o com seus olhos de esmeraldas e o sorriso mais lindo que ele já vira.
Estava tudo na cabeça dele. Absolutamente tudo.

terça-feira, março 3

Perda, papéis e tesoura

Em frente à lareira ela sentou. Mexia nas brasas como se procurasse por alguma coisa que não estava lá. Talvez procurasse pelo fogo que sua paixão perdera... ou procurasse os motivos que levaram a tal.

Abriu o álbum vermelho de fotos. O vermelho era o que guardava as recordações dos momentos mais especiais que ela vivera ao lado dele. Tantas fotos, tantas lembranças. Aos poucos, retirou uma por uma das folhas plásticas do álbum e, tão lentamente quanto retirava, as atirava na lareira que as consumia junto com o fogo que queimava.

Chorou. Se um dia, há cinco anos atrás, alguém lhe dissesse que ele acabaria fazendo com ela o que ele jurara que nunca faria, ela seria capaz de cortar relações com essa pessoa, e sequer olhar para ela depois. Confiava cegamente nele, nas palavras dele... Um erro.

O olhos vermelhos e inchados não conseguiam esconder a decepção e a raiva que agora estavam dentro dela. Pegou a tesoura e começou a picotar as fotos que ela ainda não havia queimado; nem mesmo olhava para elas, apenas as cortava com tamanha vontade que nem ela saberia explicar.

A campainha soou. Ela, como se tivesse sido puxada de volta de um sonho e voltara para a sala, parou confusa. Não era hora de receber visitas; afinal, já passava das três horas da madrugada. Ela deixou a tesoura sobre a mesinha de centro e foi até a porta. A campainha soou mais uma vez; olhou pelo olho mágico e viu, do lado de fora da casa, o cara que a enganara por todos aquelas anos e que estava em todas as fotos queimadas e picotadas no meio da sala. Atordoada com a presença dele ela deu as costas para a porta, escorregou até o chão e ficou ali, imóvel, chorando mais do que nunca.

Ele ouviu um barulho seguido por soluços e gemidos. Encostou o ouvido na porta e percebeu que ela estava do outro lado. Pediu que abrisse, pediu que parasse de chorar. Ela respondeu que fosse embora, que nunca mais ousasse chegar perto da casa dela. Ele pediu perdão, pediu que ela o escutasse. A porta se abriu.

Ela andou de volta para o centro da sala, sentou-se onde estivera a noite toda e ficou olhando para lareira, fixamente. Ele entrou, dirigiu-se para onde ela estava mas ao ver as fotos cortadas, parou. Respirou fundo para controlar suas emoções e continuou a andar. Ajoelhou-se na frente dela e puxou-a para poder abraçá-la. Ela, como se não controlasse mais o próprio corpo deixou-se levar ao encontro dele, mantendo os olhos fixos em suas lembranças e seu coração consciente da dor e do desprezo que sentia.

Quando o corpo dela foi finalmente envolvido pelo dele todas as lágrimas que estavam nos olhos dela rolaram pelo rosto, deixando úmido o ombro dele. Os olhos que estavam perdidos, olhando para dentro dela, de repente despertaram. A tesoura afiada refletia a luz da lareira, a poucos centímetros de sua mão.

segunda-feira, março 2

Tão frio como nunca estivera.
Os olhos daquele homem pareciam abandonados no vazio, admirados com o grande nada que havia na frente deles. O corpo inerte, abandonado no banco do parque, tentava expressar o estado que sua vida ficara depois de tudo; depois de uma vida inteira de fracassos e decepções. A sombra de um sorriso surgiu em sua face enrugada; um sorriso tão vazio quanto seus olhos. "Rir para não chorar, rir para não chorar..."
O homem, velho e cansado, venceu a inércia e pôs-se a andar. O parque parecia tão grande... Estava deserto àquela hora, como ele estivera durante a vida toda. O pôr do sol anunciava uma noite quase tão bela quanto fora o dia. Mas ele não percebia. O dia não fora dos mais bonitos, dentro dele. A noite escureceria o céu e tornaria a rua um lugar agradável de se ficar. Dormiria sob o céu estrelado e banhado pela lua que de tão cheia ameaçava explodir.
O banco perto da ponte sobre o lago era o seu favorito. As estrelas refletiam no espelho d'água e iluminavam tudo ao redor. Ele sentia-se vivo lá. Acomodou-se; fez do casaco rasgado e sujo seu cobertor. Deitado, olhando para o céu, viu uma estrela cadente: fechou os olhos, fez seu pedido e nunca mais os abriu.