domingo, agosto 2

Conforto

A árvores passavam pelo vidro do carro acima da velocidade permitida. Ele suava enquanto os olhos vagavam, perdendo o foco da estrada iluminada da cidade. Pareciam vazios, parecia escapar-lhe os sentidos.

Seus olhos foram cegados pela luz forte. Não era possível enxergar nada além do que se movia, vagarosamente, em sua direção; uma sombra distorcida. Uma sombra com braços e pernas, dedos que se flexionavam a intervalos regulares e frequentes, os cabelos longos e esvoaçantes. Uma sombra que poderia ser bonita, se não o assustasse tanto como fazia naquele momento.

"Não, não pode ser você... Não pode, não pode!". Os olhos ainda eram cegos, a sombra ainda vinha ao seu encontro. Não era uma sombra, era um corpo. E o corpo ainda vinha. "Não, não, não... o que está acontecendo?... Eu não posso estar vendo isso, eu não posso estar vendo você... Não você... Não você...". O corpo dele permanecia imóvel enquanto o dela chegava cada vez mais perto. Os olhos ainda cegos, o medo ainda vindo.

"O que você quer, o que pode querer... eu estou enlouquecendo...".
- Está com medo, querido?
"Ela está falando?! Não, não está... não pode estar. Ela não está aqui. Ela está morta, há três anos.
- Não precisa ter medo. Eu estou aqui com você. Nada mais pode te pegar. Eu já peguei.
- Você está morta. Eu sei que está. Eu vi. "Eu estou falando com ela, e ela está morta. Eu não estou falando com ela, eu não posso estar falando com ela..."
- Eu sei que você sabe. Eu sei que você viu. Mas agora, o que importa? Nós estamos juntos, de novo. Isso não é bom? Claro que é bom. Me dê a mão, vamos embora.
- Do que você está falando? Meu corpo não se move. Não consigo levantar. E eu não vou a lugar algum.
- Você sempre foi divertido. Senti sua falta, muito mesmo. Seu corpo não vai se mexer, está amarrado na maca... Mas nós vamos sair daqui. Não gosto desse ambiente. Me faz lembrar de quando... bem, quando eu fui embora.
- Maca?
- Da ambulância, querido.
- Ambulância? - "hum... do hospital psiquiátrico, talvez. Eu estou falando com ela, e não há como eu poder fazer isso" - Eu estou louco.
- Você está morto, amor. Agora pare com as piadas. Está na hora de ir.

O pegou pela mão e puxou, sem fazer muita força. Ele sentiu-se leve. O toque dela era suave e quente, como nunca pensou que seria. Talvez estivesse mesmo louco. Ainda estava cego, mas sabia que era ela e não temia. Andou para longe enquanto os paramédicos tentavam reanimar o corpo inerte que fora lançado para fora do carro. A luz já fugira dos olhos dele, mas ela iluminava tudo.
"Eu estou mesmo louco..."

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