quinta-feira, dezembro 24

Um presente

Ele estava sentado no sofá de couro da sala de estar do seu melhor amigo. As festas de Natal eram sempre ótimas lá, e todo ano ele ia prestigiar a popularidade do amigo e a beleza das amigas do amigo dele. Isso sim que era ótimo; era o que fazia as festas tão boas, pra dizer a verdade; verdade que ele insistia em esconder quando questionado sobre isso, afinal, ele estava lá só por causa da grande amizade dos dois. Claro, o outro não era idiota, e aceitava a resposta, visto que entendia os reais motivos e concordava com eles. Ambos, sempre em festas rodeados de mulheres.

Mas hoje era diferente. David contemplava o teto da sala com nenhuma companhia. E o Plínio, o anfitrião, parecia fugir das grandes rodas de conversas. Nem entre si conversavam e o silêncio dos dois começou a fazer barulho. Logo eles estavam na mente de todos que procuravam uma explicação pra tamanha discrição, já que normalmente eles estariam no centro da piscina com mais algumas garotas.

Não levou muito tempo até que David se levantou e despediu-se dos que estavam perto. Apanhou as chaves do carro e foi-se. Dois minutos e Plínio estava ausente também. A festa notou as ausências, mas era véspera de Natal e muitos champanhes ainda precisavam ser bebidos; a música se encarregou de apagar as memórias recentes e a festa continuou sem maiores problemas.

Dez minutos dali, o carro prateado de vidros escuros parecia esperar um novo passageiro. David abriu a porta para Plínio que entrou e acomodou-se no banco do carona. Alguma coisa parecia sacudir o carro e gritos abafados tomavam conta da atmosfera já tensa entre os dois. Mais meia hora de estrada e seria feito.

- Droga. Que droga, cara!
- Lá vem você de novo. A gente já conversou sobre isso; não tem outra saída.
- Tem que ter.
- Então qual é, gênio?
- Eu não vou matar ninguém.
- Ninguém disse que você tem que matar alguém. Droga, David. Você disse que ia ajudar, então ajuda!
- Ok. Eu disse. Mas isso foi antes de saber o que você tinha em mente. E você também não sabe mentir. Ah, eu estou tão ferrado.
- Deixa as lamentações pra mais tarde. Nós ainda não fizemos nada.
- ...
- E não adianta ficar "emburradinho" porque não vai fazer diferença. Quando a gente chegar lá, só me ajuda a tirar ela do carro.
- Não.
- Cara, ok, eu também não gosto disso. Mas ela sabe coisas que não deveriam estar nem no mais remotos dos pensamentos dela. Eu não tenho outra escolha. Se ela sair daqui viva, eu acabo preso e falido. Aí, sem mais festas de Natal, sem mais amigas, sem mais carros emprestados, sem mais...
- Que se danem as festas, as amigas, os carros e tudo mais que possa vir! Eu não vou acabar com a minha vida por causa da sua mancada!
- O que quer dizer com isso?
- Que eu to fora.
- Você já está dentro de mais para sair. Sabe, areia movediça, cara. Anda, me ajuda aqui.
- ...
- Eu não vou pedir de novo.
- Merda. Merda! Tá legal. Mas eu não vou mais longe com isso.
- Tá, tá... Deixa as promessas pro Ano Novo, cara.

O carro parou. Os dois, de luvas nas mãos, saíram do carro e dirigiram-se ao porta-malas, agora destravado. A tampa foi erguida e os gritos ficaram mais claros. Algo como "David-não-deixa-ele-fazer-isso-comigo-David-não-deixa!-não-deixa-não-deixa..." e então ele reconheceu a moça. Não era a secretária nova que Plínio dissera ser. Não era uma estranha. Era a Lu. A ex-namorada daquele covarde. A Lu, que crescera com ele e por quem ele tinha uma queda desde a oitava série. E desde que entrara na faculdade, há três anos, tinha que suportar o melhor amigo com ela. Plínio não sabia. Nunca perguntara, também. Ele não contaria, de qualquer forma. Mas então, não era a secretária, era Lu. E aquele filho-da-mãe ia apagá-la porque ela "sabia demais".

- Então, acho que essa não é a sua nova secretária, não é?
- Ah, o que?
- Ela, não é a nova secretária, não é?! É a Lu, cara! A Lu! Seu filho da puta!
- Ei, não é hora de dar nome aos bois, tá legal? É a Lu, grande coisa. Nunca valeu nada, essa vadia. E agora quer me jogar na cadeia só porque descobriu umas coisinhas, os esqueletos no meu armário. Ah, por favor. Todo mundo tem esqueletos no armário, não é, David?
- Seu filho da puta. Você não vai encostar num fio do cabelo dela.
- Eu já encostei, cara. Em todos eles, você sabe...
- Cala a boca.
- Eu acho que tem alguém um pouco exaltado aqui.
- Cala boca, desgraçado.
- Ok, você não quer fazer, eu mesmo faço. Só não me atrapalha, certo. Espera ali do lado que eu não vou demorar, não. Essa já tá sem força, nem vale a pena aproveitar antes do grande final. Vai, cara, ligeiro se não eu vou atirar na tua frente mesmo.

David foi andando, passo por passo, enquanto os gritos ficavam mais urgentes e esganiçados.
"DAVID! DAVID NÃO DEIXA! POR FAVOR, POR FAVOR NÃO DEIXA!
O barulho do tiro cortou o ar, machucando os ouvidos como se rasgasse o pulmão. Na verdade, rasgou o pulmão; o de Plínio, que não tirara a arma da mão de David antes de mandá-lo se afastar.

A arma de David escorregou das suas mãos e caiu. A moça ainda choramingava alguma coisa quando ele tirou a mordaça e desamarrou as mãos e pés dela. A Lu abraçou ele, soluçando convulsivamente e respirando com dificuldades. Não conseguia nem falar, porque aparentemente tentava bastante.

Os fogos romperam a melodia chorosa e o clima pesado do ambiente, anunciando a meia noite. O céu, tingido de todas as cores, era mais leve e exibia uma Lua totalmente cheia. Até bonita. Era uma noite feliz, pra quase todos.

- Feliz Natal, Lu. Feliz Natal.

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