Era uma manhã chuvosa. Levantou-se da cama e calçou seus chinelos verdes. Como sempre, foi ao banheiro, lavou o rosto, fez a barba e observou a mesma cara que observava há vários anos. Cada dia parecia acrescentar uma ou outra ruga na face daquele homem. Perto de completar seus 55 anos ele se sentia cansado; cansado demais para os seus 54 anos e 11 meses.
Como de costume, saiu do banheiro e vestiu-se na quarto. A mesma camisa que usara na semana passada, a mesma calça que usara semana passada. Olhou-se no espelho, dessa vez de corpo inteiro, e constatou que havia umas
dobrinhas a mais por baixo da camisa. Sentiu-se velho e gordo.
Saiu do quarto no mesmo horário de sempre. Pegou sua pasta de cima da mesa e abriu a porta. Era uma manhã chuvosa e ele esquecera completamente disso. Fechou a porta, largou a pasta e foi procurar seu guarda-chuva. "
Puta merda, vou me atrasar... vou me atrasar...". Em dias de chuva ele ficava menos tempo
contemplando suas rugas e suas
dobrinhas para ter tempo de secar-se antes de começar a trabalhar. Esquecera completamente da chuva e agora não achava seu guarda-chuva. "
Puta merda...".
Ele já podia ver o chefe andando na
direção dele, como aquele charuto fedorento na boca, sacudindo o punho fechado para ele e o
xingando de todos os nomes que no final sempre significavam a mesma coisa e queriam dizer que ele seria demitido. Mas ele sabia que não seria. Ele era o único ser que topava trabalhar nas condições que ele trabalhava: sem carteira assinada, recebendo um salário de fome e ainda permanecer naquele ambiente fedorento e sufocante, sem falar que o salário sempre recebia descontos pelos seus raros atrasos, até mesmo quando não se atrasava. Morava sozinho e não precisava de muito dinheiro para manter seu padrão de vida extremamente simples. Conformava-se com sua sorte.
Lembrou-se da chuva e da hora. Pegou sua pasta e saiu na chuva mesmo. Correu até o ponto de
ônibus e percebeu que perdera o que pegava todos os dias. O próximo passaria dali a meia hora. "
Aahh...
Puta merda,
puta merda,
puta merda...". Sentou num banco e procurou o que fazer até enxergar o seu reflexo numa poça d'água e então permaneceu ali, admirando a carne enrugada de um rosto que não parecia o dele por ser mais judiado que os seus quase 55 anos permitiam.
- Levanta os braço e não te
mexe, coroa.
"
Puta merda", pensou ele, de braços erguidos.
- Passa a pasta e a carteira, se fizer qualquer gracinha e te furo com o canivete!"
"
Puta merda... oh, droga...". O
guri levou a pasta, a carteira e um relógio que, apesar de velho, ainda
funcionava bem. Tinha sido um presente de seu pai, quando terminara o ensino médio. "Dos males, o menor. Ainda estou vivo."
O
ônibus estava chegando no ponto. Ele levantou-se, resolvido a voltar pra casa. Não podia pegar o
ônibus sem dinheiro. Virou as costas e começou a caminhar na chuva, que agora tinha ganhado força e vinha acompanhada de
alguns trovões. Não dava pra escutar nada que estivesse um pouco longe, a buzina do
ônibus que vinha desgovernado, subindo na calçada e passando por cima de tudo que estava pela frente só foi ouvida quando estava a meio metro dele. "
Puta merda".