quinta-feira, maio 7

Por causa da chuva

Era uma manhã chuvosa. Levantou-se da cama e calçou seus chinelos verdes. Como sempre, foi ao banheiro, lavou o rosto, fez a barba e observou a mesma cara que observava há vários anos. Cada dia parecia acrescentar uma ou outra ruga na face daquele homem. Perto de completar seus 55 anos ele se sentia cansado; cansado demais para os seus 54 anos e 11 meses.

Como de costume, saiu do banheiro e vestiu-se na quarto. A mesma camisa que usara na semana passada, a mesma calça que usara semana passada. Olhou-se no espelho, dessa vez de corpo inteiro, e constatou que havia umas dobrinhas a mais por baixo da camisa. Sentiu-se velho e gordo.

Saiu do quarto no mesmo horário de sempre. Pegou sua pasta de cima da mesa e abriu a porta. Era uma manhã chuvosa e ele esquecera completamente disso. Fechou a porta, largou a pasta e foi procurar seu guarda-chuva. "Puta merda, vou me atrasar... vou me atrasar...". Em dias de chuva ele ficava menos tempo contemplando suas rugas e suas dobrinhas para ter tempo de secar-se antes de começar a trabalhar. Esquecera completamente da chuva e agora não achava seu guarda-chuva. "Puta merda...".

Ele já podia ver o chefe andando na direção dele, como aquele charuto fedorento na boca, sacudindo o punho fechado para ele e o xingando de todos os nomes que no final sempre significavam a mesma coisa e queriam dizer que ele seria demitido. Mas ele sabia que não seria. Ele era o único ser que topava trabalhar nas condições que ele trabalhava: sem carteira assinada, recebendo um salário de fome e ainda permanecer naquele ambiente fedorento e sufocante, sem falar que o salário sempre recebia descontos pelos seus raros atrasos, até mesmo quando não se atrasava. Morava sozinho e não precisava de muito dinheiro para manter seu padrão de vida extremamente simples. Conformava-se com sua sorte.

Lembrou-se da chuva e da hora. Pegou sua pasta e saiu na chuva mesmo. Correu até o ponto de ônibus e percebeu que perdera o que pegava todos os dias. O próximo passaria dali a meia hora. "Aahh... Puta merda, puta merda, puta merda...". Sentou num banco e procurou o que fazer até enxergar o seu reflexo numa poça d'água e então permaneceu ali, admirando a carne enrugada de um rosto que não parecia o dele por ser mais judiado que os seus quase 55 anos permitiam.

- Levanta os braço e não te mexe, coroa.
"Puta merda", pensou ele, de braços erguidos.
- Passa a pasta e a carteira, se fizer qualquer gracinha e te furo com o canivete!"
"Puta merda... oh, droga...". O guri levou a pasta, a carteira e um relógio que, apesar de velho, ainda funcionava bem. Tinha sido um presente de seu pai, quando terminara o ensino médio. "Dos males, o menor. Ainda estou vivo."

O ônibus estava chegando no ponto. Ele levantou-se, resolvido a voltar pra casa. Não podia pegar o ônibus sem dinheiro. Virou as costas e começou a caminhar na chuva, que agora tinha ganhado força e vinha acompanhada de alguns trovões. Não dava pra escutar nada que estivesse um pouco longe, a buzina do ônibus que vinha desgovernado, subindo na calçada e passando por cima de tudo que estava pela frente só foi ouvida quando estava a meio metro dele. "Puta merda".

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