terça-feira, março 3

Perda, papéis e tesoura

Em frente à lareira ela sentou. Mexia nas brasas como se procurasse por alguma coisa que não estava lá. Talvez procurasse pelo fogo que sua paixão perdera... ou procurasse os motivos que levaram a tal.

Abriu o álbum vermelho de fotos. O vermelho era o que guardava as recordações dos momentos mais especiais que ela vivera ao lado dele. Tantas fotos, tantas lembranças. Aos poucos, retirou uma por uma das folhas plásticas do álbum e, tão lentamente quanto retirava, as atirava na lareira que as consumia junto com o fogo que queimava.

Chorou. Se um dia, há cinco anos atrás, alguém lhe dissesse que ele acabaria fazendo com ela o que ele jurara que nunca faria, ela seria capaz de cortar relações com essa pessoa, e sequer olhar para ela depois. Confiava cegamente nele, nas palavras dele... Um erro.

O olhos vermelhos e inchados não conseguiam esconder a decepção e a raiva que agora estavam dentro dela. Pegou a tesoura e começou a picotar as fotos que ela ainda não havia queimado; nem mesmo olhava para elas, apenas as cortava com tamanha vontade que nem ela saberia explicar.

A campainha soou. Ela, como se tivesse sido puxada de volta de um sonho e voltara para a sala, parou confusa. Não era hora de receber visitas; afinal, já passava das três horas da madrugada. Ela deixou a tesoura sobre a mesinha de centro e foi até a porta. A campainha soou mais uma vez; olhou pelo olho mágico e viu, do lado de fora da casa, o cara que a enganara por todos aquelas anos e que estava em todas as fotos queimadas e picotadas no meio da sala. Atordoada com a presença dele ela deu as costas para a porta, escorregou até o chão e ficou ali, imóvel, chorando mais do que nunca.

Ele ouviu um barulho seguido por soluços e gemidos. Encostou o ouvido na porta e percebeu que ela estava do outro lado. Pediu que abrisse, pediu que parasse de chorar. Ela respondeu que fosse embora, que nunca mais ousasse chegar perto da casa dela. Ele pediu perdão, pediu que ela o escutasse. A porta se abriu.

Ela andou de volta para o centro da sala, sentou-se onde estivera a noite toda e ficou olhando para lareira, fixamente. Ele entrou, dirigiu-se para onde ela estava mas ao ver as fotos cortadas, parou. Respirou fundo para controlar suas emoções e continuou a andar. Ajoelhou-se na frente dela e puxou-a para poder abraçá-la. Ela, como se não controlasse mais o próprio corpo deixou-se levar ao encontro dele, mantendo os olhos fixos em suas lembranças e seu coração consciente da dor e do desprezo que sentia.

Quando o corpo dela foi finalmente envolvido pelo dele todas as lágrimas que estavam nos olhos dela rolaram pelo rosto, deixando úmido o ombro dele. Os olhos que estavam perdidos, olhando para dentro dela, de repente despertaram. A tesoura afiada refletia a luz da lareira, a poucos centímetros de sua mão.

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