domingo, julho 25

Pista

Ela dançava por intermináveis horas. A música não importava; dançaria qualquer uma. Sentia o chão vibrando sob seus pés e era isso que queria: sentir o corpo inteiro vibrando junto com cada nota. Queria sacudir a cabeça e lançar os cabelos em todas as direções; queria espalhar o perfume deles em todos os olhos que a observavam, que a desejavam, e até naqueles que a ignoravam falsamente. Mexia o corpo com a liberdade de quem não se preocupa com sapatos, saias e blusas decotadas. Dançava como quem não tinha nada para deixar pra trás, exceto uma alma.

As luzes artificiais a seguiam na pista, por cada centímetro de corpo visível. As luzes brilhavam como se brilhassem por si mesmas. Era apenas o começo da festa.

quinta-feira, julho 22

Carolina

O velho estava sentado naquele banco há pelo menos duas horas, quando eu saí de dentro da cafeteria. Estava começando a escurecer e o dia gelado anunciava uma noite mais fria ainda. Não que ele parecesse doente, mas o velhinho de cabelos mais brancos que o papel da comanda em que eu anotava os pedidos dos clientes não devia ter uma saúde de ferro, também. "A idade deixa a gente mais vulnerável", como dizia a minha avó, e eu pensei que talvez ele tivesse dormido e esquecido desse detalhe.


Saí da cafeteria, ainda de avental e cabelos presos, para tomar um pouco de ar e fumar um cigarro antes que meu chefe voltasse pro turno da noite e me fizesse atender mais mesas do que eu dava conta, e sentei-me ao lado daquele senhor. Era mais velho do que aparentava seus cabelos; a pele e as rugas no rosto indicavam muitos anos de experiência. Ele me olhou e sorriu um sorriso de avô que olha pra netinha dando seus primeiros passos, e me perguntou como me chamava. Respondi, educada, e continuei fumando meu cigarro. Ele continuou me olhando e tornou a falar.

- Sabe, eu tive uma filha. Ela tinha o mesmo nome que você. Mas agora seria mais velha; teria idade para ser sua mãe, talvez. Mas ela nunca teve filhos, e eu não tive outros... Ficamos só eu e ela quando minha mulher se foi. Éramos amigos, sempre nos demos muito bem, mas um dia ela resolveu que não podia mais ficar comigo, porque não queria me ver morrer. Disse, assim, seca: "é melhor enfraquecer os laços pra que quando eles se romperem ainda sobre vida para o outro". Eu nunca pensei que ela tinha medo que eu morresse, mas ela tinha. Tinha muito. Saiu de casa aos 18 anos e mandava notícias de vez em quando; até me visitava quando podia. Ela enfraqueceu os laços, sim, mas só pelo lado dela. Eu ainda espero pelo dia que ela vai entrar pela porta da nossa casa velha, me trazendo um abraço saudoso e um beijo para depositar na minha testa.

O meu cigarro acabara em seguida que ele terminou de falar. Percebi que ele não me olhava mais, e que parecia incomodado com a minha companhia. Não quis parecer rude, e pedi licença para voltar pro trabalho. Levantei e o velhinho falou ligeiro:

- Não vai acontecer. Mas um dia eu a encontro.

e sorriu aquele mesmo sorriso do começo, como se não tivesse acabado de falar. Ele estava sentado há mais de duas horas, com duas rosas nas mãos e uma lágrima no olho. As rugas pareciam mais fundas e os cabelos ainda mais brancos, desde que eu sentara ao lado dele. E agora, estando de pé, pude ver que ele parecia também mais curvado. Ele olhava para as rosas com um tristeza que chegava a murchá-las, com a dor de quem sabe que não podia fazê-las recuperar a cor vívida que possuíam. Com os olhos de quem passou por mais do que aguentava e com a vontade de atar os laços novamente. Ele olhou pra mim e aquela lágrima do olho escorreu até o queixo.

- Mas não vai acontecer.

Não sei se pelo nome semelhante ao da filha, ou pela pena que ele me fez sentir, mas abracei o velho e beijei-lhe a testa. Ele me respondeu com um doído "Adeus, Carolina".

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Não pude encontrar os créditos da imagem... só sei que Google Imagens a mostrou em resposta para "velho banco". =)

domingo, julho 18

Suspiro

Quando ela acordou viu que não tinha mais por que ficar. Parecia que todos as suas aspirações eram meros detalhes de alguma coisa maior, que por estar tão longe do seu alcance permanecia sem fazer sentido nenhum; percebeu que as coisas estavam fora da ordem usual, e que isso já não importava mais.

Ela continuava pintando as flores cinzas de branco, vermelho, e roxo... e usava até o amarelo, de vez em quando. Ela continuava pintando as flores do seu próprio jardim, e então viu que essas não estavam mais lá. Mas isso também não importava, pois ela já deixara aquele lugar há algum tempo.

Havia partido; partira sentimentos também. E por não haver mais flores, pintava no peito um esboço de coração tão vermelho que não se sabia se sangrava ou se batia. Pintava traços de sobrevida.

sexta-feira, julho 16

For real - Postagem Temática, ou quase

Precisava de alguma coisa que mantivesse os seus pés no chão; há algum tempo a gravidade não conseguia cumprir essa tarefa. Tinha de encontrar algum tipo de qualquer coisa que o fizesse pensar em futuros possíveis, fazer planos concretos e tangíveis. De repente, suas ilusões não lhe bastavam.

Não queria mais saber de vícios saudáveis. Não queria mais vício nenhum. Queria ouvir música porque gostava, ler livros porque se divertia, conversar porque queria; cansou de se cansar com as pessoas e consigo mesmo. Não queria mais saber do vício do cansaço sem propósito. Não queria mais saber de tudo que fazia parte do seu conflito interno, porque esse existia desde que se entendia por gente e percebeu que estava na hora de jogar coisas no lixo. Precisava fazer cortes na vida, deixá-la sangrar até que a toxina se fosse e então costurar as feridas abertas. Precisava que a gravidade fizesse seu papel e que isso fosse suficiente. Ele queria que o chão parecesse firme sob seus pés.

Seria mais um conflito pro seu íntimo. Talvez não existisse essa "coisa" e a busca era inútil. E talvez tivesse de ser feliz consigo mesmo.

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Eu sei que o tema da postagem era "do que eu não quero saber", o que implicava um "eu" no texto. Mas eu tenho a terrível mania de transferir confissões imaginárias para terceiros. O que não significa que sou eu ali em cima. Ou ele. Ou alguém. Ou que isso seja verdade/mentira.
Que seja. N'O (meu) Inacreditável Mundo cada um tira as conclusões que quiser.

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domingo, julho 11

Partida ao meio

E então o mundo parou e ofereceu uma porta para a saída. Todos pareciam olhá-la com reprovação, observando cada movimento que dera desde que entrara no salão de festas. Ninguém se incomodava com o fato de ela não pertencer ao lugar onde estava. Preocupavam-se com o fato de nunca encontrar uma poltrona que a mantivesse sentada por mais de cinco minutos.

Ela nunca esteve à vontade cercada com aquelas paredes, e tudo que mais queria era botar o lugar no chão. Se possível, enterrá-lo. Queria destruí-lo, quebrar cada vidraça colorida e rasgar cada cortina empoeirada até não sobrar nada inteiro. O mundo que estava ali, rodeando-a com todos os inconvenientes e sufocando-a até não poder mais respirar, precisava sumir de uma vez. Quisera ela poder fechar os olhos e não encontrá-lo quando abrisse. Mas queria ver o que estava por dentro das paredes manchadas e por de baixo dos tapetes corroídos. O mundo ainda mantinha a porta aberta quando ela decidiu que estava de partida.

Mas antes, para que não se arrependesse, decidiu que encontraria todos os pontos apodrecidos daquele mundo. Decidiu que deixaria suas partes corrompidas ali, e tentaria reconstruir aquilo bem longe. Contudo, se desfazer de todos os estragos do seu íntimo levaria muito tempo. Deixou a festa, mas levou as lembranças.

sexta-feira, julho 9

Daqui pra frente.

Eu escolhi o investimento a longo prazo. Porque eu cansei de ver o meu dinheiro entrar na minha conta e sumir com coisas inúteis. Sumir por impulsos. Por bobagens. E eu, que tenho planos maiores que do que talvez seja capaz de conseguir, sempre procurava desculpas pra minha falta de controle.

Mas não mais. Eu tenho dito bastante isso ultimamente, né? Mas é porque eu preciso me convencer também. Sem mais esperas, sem mais desculpas; sem mais problemas fantasiados. A partir de agosto, as coisas vão ser diferentes.

Acho que já estava na hora de escolher alguma coisa e bater o pé. Sem ficar na dúvida e deixar que me fizessem mudar de ideia. Agora sou eu quem dita as regras da minha vida.

quarta-feira, julho 7

"Fables"

Ela soube desde o início que as coisas não aconteceriam do jeito que ela queria, simplesmente porque isso não funciona desse jeito. Ela levantou-se e começou, finalmente, a caminhada em direção ao que seria a tão esperada felicidade.

Mas desta vez sem ilusões. Ela andaria até quase chegar e então tudo ficaria mais distante. E ela não se importava, porque era assim que as coisas funcionavam. Não era para ser fácil. Nem merecido.

Sabia que vivia à mercê do acaso.


domingo, julho 4

Espelho

Eu quase acreditei em tudo aquilo quando olhei nos teus olhos. Eu podia enxergar toda a história diante de mim, cada palavra como um dado comprovado por todos os depoimentos possíveis e evidências encontradas; eu podia ver nos teus olhos o reflexo de mim.

E o meu reflexo era perfeito. Nítido, claro. Os teus olhos eram quase como um espelho e eu podia me enxergar lá dentro; dentro do teu mundo, sorrindo e sentindo de verdade tudo que tu disseste que haveria em mim. Era felicidade.

Eu vi o meu reflexo nos teus olhos e quase acreditei em ti. Se não fossem os meus olhos refletidos nos teus, e o meu sorriso quebrado estampado nos teus desejos, eu acreditaria que tudo se tornaria verdade. Mas os teus olhos refletiam a minha expressão vazia de mais pura alegria; exatamente do jeito que eu faço quando minto. E então era eu mentindo pra mim, dentro de ti.

E tu, comigo por dentro, sabias que eu nunca me deixaria enganar pelas minhas próprias palavras.